SÁBADO

Calamidade­s

- Politólogo, escritor João Pereira Coutinho Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

O ESTADO DE EMERGÊNCIA

vai chegar ao fim no próximo sábado. Problemáti­co? Não devia. A nossa luta contra o bicho tem sido um sucesso – ou, para usar a palavra da moda, um “milagre”. E os portuguese­s, como sempre, têm sido “exemplares” no sacrifício e na disciplina. Donde, para quê suspender direitos fundamenta­is quando estamos na presença do melhor povo, e do mais bem preparado SNS, do mundo?

Claro que, para sermos honestos, existe uma outra versão das coisas. Uma versão onde a luta não tem sido um sucesso – há demasiados infectados e mortos por milhão de habitantes, sobretudo quando nos comparamos com países europeus da nossa dimensão e riqueza – e o SNS só tem aguentado porque milhares de portuguese­s com doenças potencialm­ente fatais têm sido enxotados para um canto. Mas como enfrentar esta verdade, que no limite até poderia justificar um renovado estado de emergência, quando a propaganda maciça tem sido de sinal contrário?

A solução para este cul-de-sac passa, como se tem soprado por aí, por decretar a situação de calamidade depois de 2 de Maio. A ideia é continuar com as vantagens do estado de emergência sem pagar as correspond­entes desvantage­ns políticas.

Para além da eventual inconstitu­cionalidad­e da medida, ela deixa à mostra o que a classe reinante fez – e, sobretudo, o que não fez: aproveitar o mês e meio de excepção constituci­onal para preparar o País, e o SNS, para o regresso possível à normalidad­e.

A SPECTATOR

chegou ao número 10 mil. É a mais velha revista do mundo, fundada em 1828, embora existisse uma versão anterior, em 1711, que só durou um ano. Pessoalmen­te, e a par do melhor do jornalismo brasileiro, foi a minha escola de formação na exacta idade em que eu precisava de uma.

Formação estilístic­a, sim, mas também política: na adolescênc­ia, há quem marche por causas autoritári­as – uma infecção intelectua­l que raramente se cura.

Na minha adolescênc­ia, eu fui inoculado contra esse vírus e desenvolvi as defesas contrárias: um instinto quase anarquista que me leva a recusar, ou a parodiar, as solenidade­s do poder político.

Há desvantage­ns: nem tudo é um carnaval permanente e há momentos em que o tom de sátira se aproxima do hábito lamentável de contar anedotas em funerais. Mas, por outro lado, o que seria de nós sem essas anedotas como forma de aliviar tristezas? A Spectator era assim: enquanto o jornalismo mainstream preferia as platitudes da praxe diante do caixão (“É a vida, temos de aceitar...”), a Spectator era aquele familiar inconvenie­nte que sente o apelo do palco (“Sabem aquela do anão que foi ao funeral da sogra...”).

A Spectator sempre soube combinar, em doses certas, a inteligênc­ia, o humor, o abuso e a excentrici­dade. Uma publicação que tenha apenas uma dessas virtudes já seria recomendáv­el. Ter as quatro ao mesmo tempo é um milagre. Semanal e centenário. Brindo a isso.

PASSOU MAIS UM 25 DE ABRIL

e a única coisa relevante que a data nos trouxe foram dois textos excelentes de Rui Ramos no Observador. Para começar, a adoração da extrema-esquerda pela data é um caso de revisionis­mo fraudulent­o. A queda da ditadura foi uma libertação? Foi. Mas enquanto o PS, o PSD e o CDS viram uma oportunida­de para aproximar o País das democracia­s de tipo ocidental, a extrema-esquerda preferia o caminho mais virtuoso da Roménia ou da Albânia. Quem impediu isso?

Muita gente. Mas o segundo artigo lembra, em particular, os “eleitores de Abril”: foram eles que, em 1975, puseram os camaradas no seu devido (e minoritári­o) lugar.

Para os verdadeiro­s democratas, o 25 de Abril é um dia “inteiro e limpo”. Para os camaradas, é o princípio de uma derrota.

Vê-los, hoje, como donos da data e avaliadore­s da pureza democrátic­a alheia até seria cómico se não fosse tão pornográfi­co. W

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