Calamidades
O ESTADO DE EMERGÊNCIA
vai chegar ao fim no próximo sábado. Problemático? Não devia. A nossa luta contra o bicho tem sido um sucesso – ou, para usar a palavra da moda, um “milagre”. E os portugueses, como sempre, têm sido “exemplares” no sacrifício e na disciplina. Donde, para quê suspender direitos fundamentais quando estamos na presença do melhor povo, e do mais bem preparado SNS, do mundo?
Claro que, para sermos honestos, existe uma outra versão das coisas. Uma versão onde a luta não tem sido um sucesso – há demasiados infectados e mortos por milhão de habitantes, sobretudo quando nos comparamos com países europeus da nossa dimensão e riqueza – e o SNS só tem aguentado porque milhares de portugueses com doenças potencialmente fatais têm sido enxotados para um canto. Mas como enfrentar esta verdade, que no limite até poderia justificar um renovado estado de emergência, quando a propaganda maciça tem sido de sinal contrário?
A solução para este cul-de-sac passa, como se tem soprado por aí, por decretar a situação de calamidade depois de 2 de Maio. A ideia é continuar com as vantagens do estado de emergência sem pagar as correspondentes desvantagens políticas.
Para além da eventual inconstitucionalidade da medida, ela deixa à mostra o que a classe reinante fez – e, sobretudo, o que não fez: aproveitar o mês e meio de excepção constitucional para preparar o País, e o SNS, para o regresso possível à normalidade.
A SPECTATOR
chegou ao número 10 mil. É a mais velha revista do mundo, fundada em 1828, embora existisse uma versão anterior, em 1711, que só durou um ano. Pessoalmente, e a par do melhor do jornalismo brasileiro, foi a minha escola de formação na exacta idade em que eu precisava de uma.
Formação estilística, sim, mas também política: na adolescência, há quem marche por causas autoritárias – uma infecção intelectual que raramente se cura.
Na minha adolescência, eu fui inoculado contra esse vírus e desenvolvi as defesas contrárias: um instinto quase anarquista que me leva a recusar, ou a parodiar, as solenidades do poder político.
Há desvantagens: nem tudo é um carnaval permanente e há momentos em que o tom de sátira se aproxima do hábito lamentável de contar anedotas em funerais. Mas, por outro lado, o que seria de nós sem essas anedotas como forma de aliviar tristezas? A Spectator era assim: enquanto o jornalismo mainstream preferia as platitudes da praxe diante do caixão (“É a vida, temos de aceitar...”), a Spectator era aquele familiar inconveniente que sente o apelo do palco (“Sabem aquela do anão que foi ao funeral da sogra...”).
A Spectator sempre soube combinar, em doses certas, a inteligência, o humor, o abuso e a excentricidade. Uma publicação que tenha apenas uma dessas virtudes já seria recomendável. Ter as quatro ao mesmo tempo é um milagre. Semanal e centenário. Brindo a isso.
PASSOU MAIS UM 25 DE ABRIL
e a única coisa relevante que a data nos trouxe foram dois textos excelentes de Rui Ramos no Observador. Para começar, a adoração da extrema-esquerda pela data é um caso de revisionismo fraudulento. A queda da ditadura foi uma libertação? Foi. Mas enquanto o PS, o PSD e o CDS viram uma oportunidade para aproximar o País das democracias de tipo ocidental, a extrema-esquerda preferia o caminho mais virtuoso da Roménia ou da Albânia. Quem impediu isso?
Muita gente. Mas o segundo artigo lembra, em particular, os “eleitores de Abril”: foram eles que, em 1975, puseram os camaradas no seu devido (e minoritário) lugar.
Para os verdadeiros democratas, o 25 de Abril é um dia “inteiro e limpo”. Para os camaradas, é o princípio de uma derrota.
Vê-los, hoje, como donos da data e avaliadores da pureza democrática alheia até seria cómico se não fosse tão pornográfico. W