SÁBADO

AS HISTÓRIAS DOS MORTOS DE COVID-19

O FERNANDO RESISTIU, MAS PERDEU A PESSEGUINH­AS OS DOIS FILHOS NÃO SE DESPEDIRAM COM UM BEIJO

- Por Lucília Galha

A doença chegou sem aviso e obrigou a despedidas precipitad­as e difíceis: Rosa perdeu a mãe em oito horas, a mulher de Fernando morreu enquanto ele estava internado e o tio de Nuno sufocou em casa, dois dias depois do diagnóstic­o. Apesar da violência dos desfechos ficou a vida para lá da Covid-19.

Desde 16 de março até ao fecho desta edição (27 de abril), 928 pessoas morreram por causa da Covid-19. Estes são alguns dos momentos que ficaram de 10 dessas pessoas – pela voz de quem as acompanhou em vida. Silvestre tornou-se maquinista para conquistar a mulher, António adiava julgamento­s para ir buscar o filho, Maria Joaquina era tão elegante como a Rainha de Inglaterra.

MÁRIO LINO TERREIRO 72 ANOS O PUGILISTA DEIXOU UM BILHETE À SUA PRINCESA

h Uns dias depois de o pai morrer, Andreia Terreiro encontrou dois bilhetes numa das gavetas do seu quarto. Eram versos escritos por ele e dirigidos à filha mais nova, a sua “princesa” – nunca lhos chegou a dar. O primeiro dizia: “Minha filha, minha amiga, minha candura formosa, hoje rosa meia aberta, ontem um botão de rosa. Parabéns aqui te deixo, a ti, minha filha querida, que tenhas tudo de bom, ao longo da tua vida. Para ti, minha filha, a Deus peço com fervor, alegria, paz e saúde, e muito, muito amor. E o outro: “Se recordar é viver, recorda-me e viverás, esquece-me quando eu te esquecer e nunca me esquecerás. Mas se alguém te disser que eu te esqueci, reza por mim, pois nesse dia morri.” O antigo pugilista do Futebol Clube do Porto vivia para além do boxe. Era amante de fado (e até cantava), gostava de escrever quadras e, recentemen­te, tinha comprado duas guitarras portuguesa­s. “Embora não soubesse tocar”, conta o filho mais velho, Josué Terreiro. Reformou-se cedo, aos 45 anos, do seu emprego como soldador dos Transporte­s Coletivos do Porto – formação que obteve na antiga União Soviética, onde andou a soldar condutas de gás. Razão: ficou surdo do ouvido esquerdo. Terá tido a ver com o trabalho, mas também com os combates. Foram 276 ao longo da sua vida: oito vezes campeão regional, seis campeão nacional e chegou a ser selecionad­o para os Jogos Olímpicos. Era pugilista categoria Galo (51 kg). Agora dedicava-se a treinar o neto mais velho, Marcos, 16 anos, a quem ofereceu as primeiras luvas e as primeiras ligaduras. Apesar de ser saudável, “o pai passava por marido”, assegura Andreia, não resistiu à Covid-19 – morreu no dia 30 de março, pelas 16h30. Marcos prometeu à mãe honrar os títulos do avô.

SILVESTRE REIS 91 ANOS O CHEFE DE ESTAÇÃO QUE TODOS OS DIAS SONHAVA COM A MULHER h

Florinda Ferreira das Neves já tinha morrido há sete anos, mas Silvestre Reis continuava a sonhar com ela todos os dias. Foi por causa dela que decidiu ir para os Caminhos de Ferro. “Era uma maneira de ter viagens grátis para a ver, sempre à distância, por causa do pai”, conta a sobrinha, Fátima Crisóstomo. Os tios não tinham filhos, ela era como uma filha para eles. Silvestre teria 17 anos, e Florinda 15, quando se apaixonara­m: chegou a atirar pedrinhas à janela do quarto dela. “O pai deu conta e disparou dois tiros para o ar. O meu tio fugiu e subiu a uma figueira para se esconder”, recorda a professora já aposentada. O tio Beto, como o chamavam, tinha 91 anos, mas estava “todo desempenad­o, andava melhor que muitos de nós”, conta. Vivia numa residência há dois anos, mas todas as semanas ia almoçar a casa da sobrinha. “Servia-lhe sempre um café depois de almoço e ele perguntava: ‘Está batizado?’ Eu punha-lhe um cheirinho de aguardente”, admite, emocionada pela recordação. Depois da refeição, sentava-se no sofá e adormecia aquecido pela salamandra. Mesmo quando as visitas ao lar foram proibidas, por causa da pandemia, Fátima continuou a levar-lhe uma tablete de chocolate negro – um pequeno prazer. Tinha apenas tosse quando foi para o hospital, mas o seu estado agravou-se e, a 2 de abril, às 12h50, morreu vítima da Covid-19.

ANTÓNIO JOAQUIM MERÊNCIO 72 ANOS O ADVOGADO QUE NÃO PERDIA UM JOGO DO FC PORTO

h Na terça-feira, 10 de março, o pai foi buscá-lo ao aeroporto, como sempre fazia. Assim que entrava no carro, o filho mais novo, João Merêncio, 33 anos, fazia sempre a mesma pergunta: “Então o teu Porto?” O pai era ferrenho daquele clube de futebol – a ponto de tomar um calmante antes dos grandes jogos. João é enfermeiro de Cuidados Intensivos e trabalha na Suíça, mas vive em Portugal. “Vou todas as semanas e o meu pai, fosse a que horas fosse, ia levar-me e buscar-me. Chegou a adiar julgamento­s porque sabia que nesse dia eu chegava”, conta. António Joaquim Merêncio, 72 anos, era advogado e continuava a trabalhar para esperar pela reforma da mulher – 10 anos mais nova. Fizeram 38 anos de casados no dia em que foi internado, a 13 de março, e soube-se logo depois que estava infetado. “A minha mãe namorava com outro rapaz, muito mulherengo, e o meu pai estava interessad­o nela. Disse a esse rapaz: ‘Ou tu deixas a Mabilde e a respeitas, ou dou cabo de ti.’ Ficou com o caminho livre”, conta o filho. Nessa última semana, antes de adoecer, João ainda almoçou com eles todos os dias – está a projetar uma casa com a mulher, em Ovar, onde vivem, e o pai ajudava a resolver as burocracia­s. A última vez que o viu foi nesse dia 13. Morreria 13 dias depois de ser internado no Centro Hospitalar e Universitá­rio de Coimbra, às 13h15, de 31 de março. “Foram os piores dias da minha vida”, admite João Merêncio. O pai tinha artrite reumatoide e tomava um imunossupr­essor – tinha o sistema imunitário debilitado e não resistiu à infeção.

JOSEFA DA CONCEIÇÃO MIGUEL 83 ANOS A “ROSA MOTA” DEIXOU TUDO ARRUMADINH­O

h Não havia uma caneta fora do sítio, ou sequer um pano de cozinha desarrumad­o. Era assim que Josefa da Conceição Miguel gostava de ver a sua casa. Mesmo no dia em que foi internada, fez questão de arrumar tudo antes de ir para o hospital. A filha mais nova, Maria Alice, ficou impression­ada quando, já depois de a mãe morrer, entrou em sua casa para procurar uma fotografia. É essa a imagem que guarda dela: “Não me Q

SILVESTRE APAIXONOU-SE AOS 17 ANOS. SÓ FOI PARA OS CAMINHOS DE FERRO PARA CONQUISTAR A MULHER

ANTÓNIO PUNHA A FAMÍLIA EM PRIMEIRO LUGAR: ATÉ ADIAVA JULGAMENTO­S PARA IR BUSCAR O FILHO

Q lembro de a ver sentada no sofá. Queria tudo em movimento, tinha uma energia contagiant­e”, conta à SÁBADO. Não era por acaso que amigos e familiares a chamavam Rosa Mota. Era vaidosa e gostava de se arranjar. Ao sábado de manhã, ia ao cabeleirei­ro e, ao domingo, tomava o pequeno-almoço com as amigas na Confeitari­a Leça, ia à missa do padre Francisco e almoçava no restaurant­e. Dizia com graça: “Já sou empregada a semana toda, ao fim de semana, sou patroa.” Não gostava do nome Josefa, preferia Sãozinha e até pedia à filha para, quando partisse, pôr Conceição Miguel na lápide. Era muito cuidadosa com o que comia, sobretudo peixe, fruta e sopas. Resistiu a dois cancros: o primeiro, em 2001, no intestino, e o segundo, no ano passado, ao duodeno. Numa semana, foi operada duas vezes: tiraram-lhe parte do intestino, do estômago, do fígado e do pâncreas. Foi internada a 18 de março por causa de uma infeção urinária, depois teve uma bactéria no sangue e acabou por apanhar o vírus. Morreu no dia a seguir ao domingo de Páscoa, a 13 de abril. Maria Alice tem, desde então, uma vela branca acesa em casa – em homenagem à mãe. “Nunca vi vela a arder como esta”, diz, emocionada.

ARMANDO JOSÉ DIAS 58 ANOS SE O CÉU PRECISA DE UM ELETRICIST­A, LEVOU O MELHOR

h As famílias de seis irmãos moram naquele aglomerado de casas em Baguim do Monte, Gondomar. É o mesmo bloco, mas as entradas são independen­tes. Amiúde, ouvia-se a frase: “O pai já vai.” Era como Armando José Dias, 58 anos, respondia, sempre que era preciso tirar um carro que estivesse a bloquear a saída de outro. No pátio comum às casas, o eletricist­a comemorava com grande vigor o São João. Nas semanas que antecediam à festa, punha as lâmpadas e os balões de papel. “Inventou um sistema com secadores de cabelo que serviam de fogareiros para assar castanhas, e outro para assar sardinhas”, conta o sobrinho por afinidade, Nuno Coelho. Além das netas (tinha duas de sangue, a Mariana e a

Carolina, e outra, a Maria, de coração), gostava de pintar e de fazer retratos da família, a carvão ou a óleo, em tela. “Eu dizia-lhe, na brincadeir­a, que ele estava entre o Picasso e o Dalí”, diz o arquiteto. Era autodidata, nunca teve formação. Em apenas dois dias, o vírus destruiu-lhe os pulmões e não resistiu. Era improvável que lhe acontecess­e a ele: “Tinha a diabetes controlada, era cuidadoso e muito novo”, detalha Nuno Coelho. Soube que estava positivo (para a Covid-19) dois dias antes, mas foi para casa. Às 5h, de 31 de março, acordou com falta de ar – já estava a dormir separado da mulher, para não a contaminar. Quando o INEM chegou, já não o conseguira­m reanimar. Na noite em que a neta mais nova, Carolina, 3 anos, soube que o avô morreu, quase não havia estrelas no céu. Mas estava lá uma, muito brilhante. “Olha, mãe, está ali o avô”, disse para Ana, a filha mais nova de Armando. Nuno Coelho, que formava sempre dupla com o tio (nos matraquilh­os ou nas descidas do Mondego, que faziam a cada dois anos), não tem dúvidas: “Se o céu precisa de um eletricist­a, então vai ficar tudo bem: levou o melhor.”

MARIA AFONSO 91 ANOS AS MEMÓRIAS DA ÚLTIMA TARDE COM A FILHA

h Nenhuma das filhas (tinha três, mais um rapaz) herdou da mãe o jeito de mãos. “Ela bordava muito e achava que nós não éramos boas donas de casa porque não fazíamos camisolas para os nossos filhos”, conta a filha, Natália Cernadas, de 62 anos. Maria Afonso, 91 anos, foi toda a vida doméstica, dona de casa prendada que aos domingos tinha sempre um bolo caseiro – pão-de-ló ou pudim, de que o irmão de Natália gostava muito. Mas era a matriarca da família: o marido ganhava o dinheiro, ela é que o geria. “Sempre que o assunto era esse, o meu pai dizia-nos: ‘Têm de falar com a mãe’”, conta a antiga professora de Francês. Até aos 89 anos viveu sozinha e independen­te, mas, a partir daí, começou a ter lapsos de memória. Nunca deixou de reconhecer a família – estava viúva há 14 anos, e, além dos quatro filhos, tinha seis netos e quatro bisnetos –, mas esquecia-se de comer. Estava há dois anos numa residência sénior em Pedrouços, na Maia (onde se terá infetado), e morreu por causa da Covid-19 a 3 de abril. Natália Cernadas não chegou a vê-la doente, nem fragilizad­a – o lar suspendera as visitas cerca de um mês antes, e a última memória que guarda da mãe é reconforta­nte. “Fui visitá-la, ia sempre, e passeámos no jardim porque estava sol. Ela comeu Nestum nesse dia, ao lanche. Lembro-me de que tinha

ARMANDO FESTEJAVA COM VIGOR O SÃO JOÃO. ATÉ ARRANJOU UM SISTEMA DE ASSAR SARDINHAS COM SECADORES

as unhas pintadas de cinzento e eu perguntei-lhe: ‘Mãezinha, gostas dessa cor?’ Respondeu-me resignada, mas sorridente: ‘Ora, foram elas que mas pintaram’”, recorda.

ROSA GOMES MARTINS 82 ANOS DESPEDIU-SE DA FILHA, MAS NÃO DO NETO ROFINHO

h Eram 7h da manhã de 30 de março quando Rosária Muniz recebeu uma chamada da mãe a pedir para a levar para o hospital – estava com muita falta de ar. Não ficou apreensiva, já tinha visto a sua mãe pior. Rosa Martins começou a ter problemas de saúde aos 59 anos. Sofria de asma crónica, tinha bronquite, só um pulmão a funcionar (a apenas 30%) e dependia de oxigénio 24h por dia. Apesar disso, era independen­te: fazia o jantar e preparava-se sozinha. “Os médicos admiravam-se com a força dela”, conta a segunda filha de cinco. Nessa manhã, Rosária Muniz soube que o estado de saúde da sua mãe era crítico – tão grave que a chamaram para se despedir. Vestiu um equipament­o de proteção, sentou-se ao seu lado e ainda lhe pegou na mão. Oito horas depois daquele primeiro telefonema, receberia a notícia de que a mãe tinha morrido. A vida não foi mais fácil do que a morte: Rosa vinha de uma família de lavradores, não foi à escola porque, aos 8 anos, já ajudava os pais a levar o gado para pastar. “Mas aprendeu sozinha a ler e fazia contas melhor do que nós”, conta a filha. Aos 18, mudou-se da então freguesia de São Paio de Merelim, em Braga, para Matosinhos. Foi trabalhar na casa de um casal como empregada interna. Conheceria o seu marido nas idas ao mercado – ele tinha lá uma banca de verduras. Para criar os cinco filhos teve, a certa altura, de emigrar para Niterói, no Brasil – onde vivia uma cunhada. Tinha seis netos e três bisnetos, mas o primeiro era o preferido. Roffmam Muniz, ou Rofinho (como a avó lhe chamava), vive no Brasil, mas já tinha prometido vir passar o Natal com ela. Quando emigrou, em 2016, ela achou que nunca mais iria vê-lo. Assim aconteceu.

Q

MARIA AFONSO ERA A MATRIARCA DA FAMÍLIA. NÃO TRABALHAVA MAS ERA ELA QUEM GERIA O DINHEIRO

ROSA MARTINS NÃO FOI À ESCOLA, MAS APRENDEU A LER SOZINHA E FAZIA CONTAS MELHOR DO QUE NINGUÉM

Q ANA DA CONCEIÇÃO ALVES 89 ANOS A ANINHAS ERA MESTRE A FAZER CALÇAS

h O incêndio que deflagrou no prédio de quatro andares onde vivia com o marido deixou intactas apenas as paredes exteriores do edifício. Mas foi encontrado no meio dos escombros um objeto mínimo, de grande valor para Aninhas: o relógio de peito que o seu filho mais velho lhe trouxe de Paris. Eugénio Gonçalves guarda essa recordação que resistiu ao incêndio e que agora lhe lembra a sua mãe. Ana da Conceição Alves, 89 anos, toda a vida foi dona de casa, mas tinha uma espécie de ofício informal: era calceira (operária que só faz calças). O seu pai era um dos principais alfaiates de Matosinhos e Leça da Palmeira – vestia os mestres de traineira e arraste e os patrões das fábricas de conservas. “Aos sábados íamos entregar-lhes os fatos para usarem no dia seguinte. Passear na Brito Capelo era a vaidade de domingo”, conta o filho de 70 anos. Vivia sozinha desde a morte do marido, há 14 anos. Até ao final do ano passado, ia todas as sextas-feiras à piscina com a nora. A 5 de janeiro, foi internada no Hospital Pedro Hispano com uma infeção no rim, e já não regressou a casa. Nesse período de quase três meses também foi operada à coluna e preparava-se para ter alta quando se infetou – Eugénio Gonçalves já tinha, inclusive, arranjado uma cama articulada. “Só soubemos que ela estava infetada no dia em que ela morreu”, conta, pesaroso. A comunicaçã­o com o hospital era difícil. Ana da Conceição Alves morreu às 23h45 do dia 2 de abril. h Quando, na sexta-feira, 27 de março, teve falta de ar e deu entrada no Hospital de Santo António, no Porto, ninguém esperava aquele desfecho. Nem sabiam sequer que estava infetada. Dois dias depois, domingo, 29, o marido, Fernando Moreira Ramiro, foi internado no

São João – perdera o palato e, depressa, o seu estado de saúde agravou. Foi transferid­o para os Cuidados Intensivos e recebeu oxigénio. Foi durante esse período (uns oito dias) em que esteve mais crítico, que a sua Cândida acabou por morrer. Aconteceu a 30 de março, pelas 10h, enquanto o marido estava internado. Quando, finalmente, teve acesso ao telemóvel “recebi a notícia que menos esperava”, diz, emocionado. “Alguma vez eu pensava que era caso de morte”, diz, incrédulo. Estavam casados há 39 anos e meio, a beirar os 40 (que celebraria­m a 11 de novembro). Viviam na mesma freguesia, Sobrado, em Valongo, e ambos gostavam de bailaricos – “os passos de dança batiam certos”, recorda Fernando. A antiga operária fabril herdara, assim como os irmãos (eram sete raparigas e dois rapazes), a alcunha da mãe: Pesseguinh­as. Que terá surgido porque ela tinha uma taberna. Era assim que Fernando a chamava quando se queria meter com ela. Cândida não se ficava: “Sou, e com muito gosto.” Apesar da vitalidade, tinha vários problemas de saúde: sofria de diabetes tipo 1 e precisava de insulina duas vezes por dia; teve tuberculos­e aos 13 anos que lhe deixou sequelas nos pulmões e recebeu um transplant­e de rins há quase 30 anos – estava em vias de começar novamente a hemodiális­e. h O último dia em que Mário Alves esteve com a mãe foi a 5 de abril. Guarda uma memória feliz, e reconforta­nte, dessa noite. Ela já tinha algumas dificuldad­es de mobilidade, agravadas pelo confinamen­to. Mário e a mulher, Fátima, estavam a deitá-la, mas ela não estava a colaborar. “Dona Joaquina, está a ficar trenga, não me ajuda nada”, disse-lhe a nora, para a arrebitar. “A minha mãe levantou a cabeça e saiu-se com uma muito engraçada: ‘Trenga és tu!’ Foi um momento de descompres­são”, recorda o filho mais velho, de 50 anos. Antes de trabalhar como cortadeira numa fábrica têxtil, a Ti Quina – “como o meu pai há uns anos a tratava, carinhosam­ente” –, começou como padeira, para ajudar a mãe. Foi na distribuiç­ão do pão porta a porta que, com 21 anos, conheceu o marido. “Aquele homem vestido de preto, e com gravata, intrigava-a”, conta o administra­dor financeiro. Casaram e, a 25 de maio de 2018, celebraram 50 anos de casados. Maria Joaquina parecia “a Rainha de Inglaterra” nesse dia – “estava fabulosa”. Gostava de se arranjar e de ter o armário cheio. “A dona Joaquina trazia tudo o que havia na rua e metade das coisas não usou”, reclamava, conformado, o marido. Quando o casal ia de férias, era preciso levar uma mala vazia só para as compras. Entrou no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, a 6 de abril com uma infeção urinária grave. Depois, teve uma infeção no estômago e outra no rim. A 13 souberam que estava infetada com Covid-19, e quatro dias depois, a 17, acabaria por morrer. A despedida foi o que mais custou – não houve oportunida­de sequer para os dois filhos lhe darem um beijo. Mas, a caminho do cemitério, o carro da funerária parou um instante na casa dos seus pais. Foi um “momento emotivo” e a homenagem possível em dias de pandemia. W

SEMPRE QUE SE QUERIA METER COM A MULHER, FERNANDO CHAMAVA-LHE PESSEGUINH­AS – A ALCUNHA QUE CÂNDIDA RECEBEU DA MÃE

TI QUINA ERA VAIDOSA. GOSTAVA DE TER O ARMÁRIO CHEIO E METADE DAS COISAS NEM SEQUER USAVA

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A doença chegou sem aviso e obrigou a despedidas precipitad­as e difíceis: Maria Alice Oliveira perdeu a mãe Josefa. Esta e mais nove histórias para ler esta semana
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Maria Afonso (à direita) com a filha, Natália Cernadas, e uma das bisnetas, Camila, no dia do seu batizado, em 2015
i Maria Afonso (à direita) com a filha, Natália Cernadas, e uma das bisnetas, Camila, no dia do seu batizado, em 2015
 ??  ?? Eugénio Gonçalves segura um retrato da mãe, Ana da Conceição Alves, que trabalhou como calceira para vestir os mestres das traineiras
Eugénio Gonçalves segura um retrato da mãe, Ana da Conceição Alves, que trabalhou como calceira para vestir os mestres das traineiras

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