REPORTAGEM NA ASSEMBLEIA
Sem máscara, de mãos na boca e conversas cara a cara. Como os deputados quebram as regras
Se o deputado comunista António Filipe estiver infetado com o novo coronavírus (Covid-19), é provável que tenha contagiado o seu líder da bancada, João Oliveira. Ou vice-versa. Sem máscara, falavam sentados lado a lado em pleno debate quinzenal, a menos de meio metro um do outro, sem qualquer distância de segurança, numa fila de hemiciclo composta por cinco cadeiras, três delas vazias. No lado oposto da Assembleia da República (AR), o social-democrata José Silvano, ao entrar em plenário, deu uma palmada amigável no peito do deputado Hugo Carneiro (PSD), trocando os dois umas palavras bem-humoradas de perto. Os deputados presentes no debate de dia 22 de abril mostravam-se assintomáticos, é verdade, mas quase todos arriscavam na hora de interagir com o colega do lado ou da frente.
Com vista privilegiada das galerias para o plenário, a SÁBADO esteve atenta a um detalhe em concreto do debate quinzenal: os desrespeitos dos deputados no que toca às regras básicas de higiene, distanciamento social e etiqueta respiratória em tempos de pandemia. E tanto à esquerda como à direita, houve aglomerados, conversas com proximidade e toques inconscientes, no nariz, boca e em partes do corpo de colegas – e até pausas para ir em grupo à geladaria mais próxima.
Rio, um íman laranja
Um dos partidos mais saídos da casca é o PSD. Com o tocar da campainha da AR que deu início aos trabalhos, viu-se uma enchente de sociais-democratas. Entram em direção aos seus lugares, param para cumprimentar os colegas, Q
Q meter a conversa em dia, todos em grupos de três ou quatro pessoas. Quando chegam aos seus lugares, ligam os respetivos computadores e pouco depois, antes sequer da intervenção inicial do primeiro-ministro, vão-se embora.
Um dos que ficaram mais cercados foi Rui Rio. À sua volta no corredor da bancada laranja, Álvaro Almeida, Isabel Meireles e Ricardo Baptista Leite (o único de máscara no PSD) conversavam próximos do presidente social-democrata, que esboçava um sorriso para os companheiros. Esperemos que ninguém naquele grupo esteja infetado, porque àquela distância de conversa – muito menor do que a medida de um a dois metros recomendada pela Direção-Geral da Saúde – houve com certeza troca de gotículas.
De acordo com fontes na bancada social-democrata, este aglomerado inicial na bancada do PSD deve-se a um novo sistema implementado: foi pedido aos parlamentares do PSD para marcar presença no computador e ir embora, ficando apenas os 16 escalados, entre eles coordenadores e vices, para cumprir a quota do 1/5 da bancada. Antes era diferente: só iam os 16 e os deputados de Lisboa, Setúbal e Santarém (mais próximos de Lisboa) ficavam em standby para substituições.
Quando acabaram os trabalhos parlamentares, um grupo de quatro deputados do PSD fez-se à fila do Nannarella, popular geladaria ao lado de São Bento. Entre eles, Cristóvão Norte e Carlos Silva, numa amena cavaqueira acompanhada por toques no braço, proximidade social e boa-disposição.
A deputada que dá viseiras
“É de não nos vermos há algum tempo, sabe”, disse Lina Lopes, deputada do PSD e vice-secretária da mesa do parlamento, tentando justificar o excesso de convívio da sua bancada. A parlamentar, do círculo eleitoral de Lisboa, é das poucas que se protegem – e que faz pelos outros também. Naquela tarde de debate quinzenal, trouxe da UGT (em que preside à comissão de mulheres) uma caixa de 20 viseiras, uma para si e as restantes para os seus colegas de parlamento.
“Outros deputados já me tinham pedido viseiras antes e eu fiz questão de as trazer [à AR] para as distribuir”, contou à SÁBADO. Com a ajuda da socialista Maria da Luz Rosinha, primeira secretária da Mesa da Assembleia da República, Lina Lopes distribuiu 15 viseiras entre deputados e funcionários. “Um agente da polícia até confessou que preferia ter a nossa viseira da UGT, que é mais confortável”, explicou a deputada.
Vários parlamentares do PS e PSD aceitaram a oferta, mas apenas Fernanda Velez (PSD) ousou equipar-se prontamente. “Alguns deputados disseram que preferiam primeiro desinfetar em casa”, explicou. Foi o caso do socialista Santinho Pacheco, da Guarda, que preferiu pôr de lado a viseira.
“Há alguma vergonha em usar este tipo de proteção, como máscaras, admito. Ainda nos estamos a adaptar a esta realidade. Lembro-me da primeira vez que vimos um colega de bancada a usar uma máscara: chocou-nos. Mas é porque não estamos habituados”, salientou, referindo-se a Emídio Guerreiro. A social-democrata explica que muitos hesitaram em usar logo máscara devido à recomendação inicial da DGS em não a usar.
Uma esquerda descuidada
A deputada e ex-ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, tem todos os cuidados necessários: gel desinfetante em cima da mesa, máscara cirúrgica na cara e uma distância de segurança do seu colega de carteira, Pedro Delgado Alves. Quando os colegas socialistas começam a trocar palavras, a ex-governante retira a máscara com os dedos segurando pela área exterior “infetada”, quiçá inconscientemente.
A esquerda parlamentar é, em geral, descuidada no que toca às regras de etiqueta Covid-19. No Bloco de Esquerda, não há qualquer proteção à vista nem se pratica distanciamento (as cadeiras são ocupadas sem intervalo). No PCP existe muita descontração: Bruno Dias cumprimentou António Filipe, atirando gotículas para a bancada, e Paula Santos saiu do seu lugar para ir sussurrar a Alma Rivera, por exemplo.
No Governo, nota-se que é difícil abandonar velhos hábitos. O primeiro-ministro, António Costa, tem tendência para coçar o olho e o ministro da Economia, Pedro Siza
Vieira, boceja com o assunto das telescolas (e põe a mão na boca, como manda a boa educação, sendo pouco higiénico em tempos de pandemia). Até o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Duarte Cordeiro, faz o que está habituado: tapa a boca com uma mão quando fala ao telefone.
Em geral, pouca gente usa máscara no parlamento. No total, apenas sete parlamentares usaram equipamento de proteção individual no debate quinzenal: Urbano de Sousa era uma das três deputadas do PS de máscara, juntando-se a Ricardo Baptista Leite e às duas sociais-democratas de viseira. Na bancada do Governo, nem uma.
Nem o próprio presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues. A dias da celebração no parlamento do 25 de Abril, a segunda figura de Estado recusou a ideia de que os presentes usassem máscara, já que o mesmo não acontece nos plenários que têm continuado a realizar-se “sem que nunca se tivesse levantado esse problema de saúde pública”. “Então nós íamos mascarados para o 25 de Abril?”, perguntou.
A ligeireza perante o uso de máscara contrasta com medidas aplicadas às escolas, por exemplo: quando as aulas retomarem, o uso de máscara será obrigatório no 11º e 12º anos. Para Fausto Pinto, presidente do Conselho de Escolas Médicas Portuguesas, “está demonstrado que a utilização das máscaras diminui o potencial de contaminação”. “O que nos incomodou na posição da DGS foi o argumento ‘de que não era eficaz’. Isto não é verdade. O que temos é que não há máscaras suficientes e, por isso, arranjou-se um artifício, uma desculpa.” W
“HÁ ALGUMA VERGONHA EM USAR ESTE TIPO DE PROTEÇÃO”, EXPLICA LINA SANTOS, DAS POUCAS PESSOAS QUE A USAM