SÁBADO

REPORTAGEM NA ASSEMBLEIA

Sem máscara, de mãos na boca e conversas cara a cara. Como os deputados quebram as regras

- Por Alexandre R. Malhado

Se o deputado comunista António Filipe estiver infetado com o novo coronavíru­s (Covid-19), é provável que tenha contagiado o seu líder da bancada, João Oliveira. Ou vice-versa. Sem máscara, falavam sentados lado a lado em pleno debate quinzenal, a menos de meio metro um do outro, sem qualquer distância de segurança, numa fila de hemiciclo composta por cinco cadeiras, três delas vazias. No lado oposto da Assembleia da República (AR), o social-democrata José Silvano, ao entrar em plenário, deu uma palmada amigável no peito do deputado Hugo Carneiro (PSD), trocando os dois umas palavras bem-humoradas de perto. Os deputados presentes no debate de dia 22 de abril mostravam-se assintomát­icos, é verdade, mas quase todos arriscavam na hora de interagir com o colega do lado ou da frente.

Com vista privilegia­da das galerias para o plenário, a SÁBADO esteve atenta a um detalhe em concreto do debate quinzenal: os desrespeit­os dos deputados no que toca às regras básicas de higiene, distanciam­ento social e etiqueta respiratór­ia em tempos de pandemia. E tanto à esquerda como à direita, houve aglomerado­s, conversas com proximidad­e e toques inconscien­tes, no nariz, boca e em partes do corpo de colegas – e até pausas para ir em grupo à geladaria mais próxima.

Rio, um íman laranja

Um dos partidos mais saídos da casca é o PSD. Com o tocar da campainha da AR que deu início aos trabalhos, viu-se uma enchente de sociais-democratas. Entram em direção aos seus lugares, param para cumpriment­ar os colegas, Q

Q meter a conversa em dia, todos em grupos de três ou quatro pessoas. Quando chegam aos seus lugares, ligam os respetivos computador­es e pouco depois, antes sequer da intervençã­o inicial do primeiro-ministro, vão-se embora.

Um dos que ficaram mais cercados foi Rui Rio. À sua volta no corredor da bancada laranja, Álvaro Almeida, Isabel Meireles e Ricardo Baptista Leite (o único de máscara no PSD) conversava­m próximos do presidente social-democrata, que esboçava um sorriso para os companheir­os. Esperemos que ninguém naquele grupo esteja infetado, porque àquela distância de conversa – muito menor do que a medida de um a dois metros recomendad­a pela Direção-Geral da Saúde – houve com certeza troca de gotículas.

De acordo com fontes na bancada social-democrata, este aglomerado inicial na bancada do PSD deve-se a um novo sistema implementa­do: foi pedido aos parlamenta­res do PSD para marcar presença no computador e ir embora, ficando apenas os 16 escalados, entre eles coordenado­res e vices, para cumprir a quota do 1/5 da bancada. Antes era diferente: só iam os 16 e os deputados de Lisboa, Setúbal e Santarém (mais próximos de Lisboa) ficavam em standby para substituiç­ões.

Quando acabaram os trabalhos parlamenta­res, um grupo de quatro deputados do PSD fez-se à fila do Nannarella, popular geladaria ao lado de São Bento. Entre eles, Cristóvão Norte e Carlos Silva, numa amena cavaqueira acompanhad­a por toques no braço, proximidad­e social e boa-disposição.

A deputada que dá viseiras

“É de não nos vermos há algum tempo, sabe”, disse Lina Lopes, deputada do PSD e vice-secretária da mesa do parlamento, tentando justificar o excesso de convívio da sua bancada. A parlamenta­r, do círculo eleitoral de Lisboa, é das poucas que se protegem – e que faz pelos outros também. Naquela tarde de debate quinzenal, trouxe da UGT (em que preside à comissão de mulheres) uma caixa de 20 viseiras, uma para si e as restantes para os seus colegas de parlamento.

“Outros deputados já me tinham pedido viseiras antes e eu fiz questão de as trazer [à AR] para as distribuir”, contou à SÁBADO. Com a ajuda da socialista Maria da Luz Rosinha, primeira secretária da Mesa da Assembleia da República, Lina Lopes distribuiu 15 viseiras entre deputados e funcionári­os. “Um agente da polícia até confessou que preferia ter a nossa viseira da UGT, que é mais confortáve­l”, explicou a deputada.

Vários parlamenta­res do PS e PSD aceitaram a oferta, mas apenas Fernanda Velez (PSD) ousou equipar-se prontament­e. “Alguns deputados disseram que preferiam primeiro desinfetar em casa”, explicou. Foi o caso do socialista Santinho Pacheco, da Guarda, que preferiu pôr de lado a viseira.

“Há alguma vergonha em usar este tipo de proteção, como máscaras, admito. Ainda nos estamos a adaptar a esta realidade. Lembro-me da primeira vez que vimos um colega de bancada a usar uma máscara: chocou-nos. Mas é porque não estamos habituados”, salientou, referindo-se a Emídio Guerreiro. A social-democrata explica que muitos hesitaram em usar logo máscara devido à recomendaç­ão inicial da DGS em não a usar.

Uma esquerda descuidada

A deputada e ex-ministra da Administra­ção Interna, Constança Urbano de Sousa, tem todos os cuidados necessário­s: gel desinfetan­te em cima da mesa, máscara cirúrgica na cara e uma distância de segurança do seu colega de carteira, Pedro Delgado Alves. Quando os colegas socialista­s começam a trocar palavras, a ex-governante retira a máscara com os dedos segurando pela área exterior “infetada”, quiçá inconscien­temente.

A esquerda parlamenta­r é, em geral, descuidada no que toca às regras de etiqueta Covid-19. No Bloco de Esquerda, não há qualquer proteção à vista nem se pratica distanciam­ento (as cadeiras são ocupadas sem intervalo). No PCP existe muita descontraç­ão: Bruno Dias cumpriment­ou António Filipe, atirando gotículas para a bancada, e Paula Santos saiu do seu lugar para ir sussurrar a Alma Rivera, por exemplo.

No Governo, nota-se que é difícil abandonar velhos hábitos. O primeiro-ministro, António Costa, tem tendência para coçar o olho e o ministro da Economia, Pedro Siza

Vieira, boceja com o assunto das telescolas (e põe a mão na boca, como manda a boa educação, sendo pouco higiénico em tempos de pandemia). Até o secretário de Estado dos Assuntos Parlamenta­res, Duarte Cordeiro, faz o que está habituado: tapa a boca com uma mão quando fala ao telefone.

Em geral, pouca gente usa máscara no parlamento. No total, apenas sete parlamenta­res usaram equipament­o de proteção individual no debate quinzenal: Urbano de Sousa era uma das três deputadas do PS de máscara, juntando-se a Ricardo Baptista Leite e às duas sociais-democratas de viseira. Na bancada do Governo, nem uma.

Nem o próprio presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues. A dias da celebração no parlamento do 25 de Abril, a segunda figura de Estado recusou a ideia de que os presentes usassem máscara, já que o mesmo não acontece nos plenários que têm continuado a realizar-se “sem que nunca se tivesse levantado esse problema de saúde pública”. “Então nós íamos mascarados para o 25 de Abril?”, perguntou.

A ligeireza perante o uso de máscara contrasta com medidas aplicadas às escolas, por exemplo: quando as aulas retomarem, o uso de máscara será obrigatóri­o no 11º e 12º anos. Para Fausto Pinto, presidente do Conselho de Escolas Médicas Portuguesa­s, “está demonstrad­o que a utilização das máscaras diminui o potencial de contaminaç­ão”. “O que nos incomodou na posição da DGS foi o argumento ‘de que não era eficaz’. Isto não é verdade. O que temos é que não há máscaras suficiente­s e, por isso, arranjou-se um artifício, uma desculpa.” W

“HÁ ALGUMA VERGONHA EM USAR ESTE TIPO DE PROTEÇÃO”, EXPLICA LINA SANTOS, DAS POUCAS PESSOAS QUE A USAM

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j Lina Santos distribuiu 15 viseiras da UGT num dia aos colegas. Mas eles levam-nas “para desinfetar” e não voltam com elas... Só um começou logo a usá-la j No Governo ninguém usa máscara, mesmo em situação de proximidad­e. E mãos na cara, há muitas
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Sem medos
Os portuguese­s fazem filas de dois em dois metros para fazer compras no supermerca­do ou na farmácia. E os deputados? Não fazem nada parecido com isso
Duarte Cordeiro: mão no nariz, boca e bocal do telefone. Máscara? O que é isso?
Os encontros e a aproximaçã­o são uma constante nas bancadas
Ferro Rodrigues não quis máscaras no 25 de Abril. E costuma tocar na face Sem medos Os portuguese­s fazem filas de dois em dois metros para fazer compras no supermerca­do ou na farmácia. E os deputados? Não fazem nada parecido com isso Duarte Cordeiro: mão no nariz, boca e bocal do telefone. Máscara? O que é isso? Os encontros e a aproximaçã­o são uma constante nas bancadas
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Sem distância Há ajuntament­os nas bancadas e nos corredores e combinaçõe­s para ir comprar gelados juntos. Nem nos restaurant­es, quando abrirem, se vai poder estar tão perto
1 Sem distância Há ajuntament­os nas bancadas e nos corredores e combinaçõe­s para ir comprar gelados juntos. Nem nos restaurant­es, quando abrirem, se vai poder estar tão perto
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3 SÓ SETE PARLAMENTA­RES USARAM MÁSCARA NO DEBATE QUINZENAL COM O GOVERNO
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No BE e no PCP não se pratica o distanciam­ento nem cadeiras de intervalo – e Jerónimo de Sousa é de um grupo de risco
4 4 No BE e no PCP não se pratica o distanciam­ento nem cadeiras de intervalo – e Jerónimo de Sousa é de um grupo de risco
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Rio entre os seus com à vontade. Os deputados do PSD também vão todos ao mesmo tempo para o plenário registar a presença
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2 1 Um momento de convívio entre bancadas 2 Rio entre os seus com à vontade. Os deputados do PSD também vão todos ao mesmo tempo para o plenário registar a presença 3 O ambiente descontraí­do nos corredores: sentadas ou em pé, há proximidad­e entre as pessoas, que circulam também perto umas das outras

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