SÁBADO

JOÃO PEDRO GEORGE

- Escritor e sociólogo João Pedro George

Oliveira é o mais acabado exemplar do indivíduo que diz uma coisa e faz outra. Na teoria, é radicalmen­te do contra, é um ácido crítico das instituiçõ­es capitalist­as e dos seus representa­ntes. Na prática vivida, porém, cultiva a lei desvairada do dinheiro, entrega-se ao instinto de ganhuça do capitalism­o, é um escrupulos­o defensor da concorrênc­ia implacável e da fórmula autoritári­a

Luís Oliveira, fundador e patrão da Antígona, colocou uma providênci­a cautelar à Clube do Autor por esta ter editado o livro 1984, de George Orwell (prefácio de José Rodrigues dos Santos). Como detentora dos direitos da obra, até ao fim deste ano, a Antígona exige à Clube do Autor que retire o livro de circulação. Segundo Oliveira, “embora eu não seja contra os piratas, esta edição é pirata”.

A prática de Luís Oliveira como editor, a sua trajectóri­a pessoal e, inclusive, a sua autoprocla­mada ideologia libertária deveriam tê-lo inibido de tomar atitude tão hipócrita e oportunist­a. Isto é tanto mais bizarro quanto é certo que Oliveira, desde que fundou a Antígona e até, pelo menos, 1992, não pagou direitos de quase nenhumas traduções (que constituem a esmagadora maioria do catálogo do autodenomi­nado editor refractári­o). Quem o afirma é Pedro Jofre, no elucidativ­o folheto O Desprezo. Acerca da recente reedição de A Sociedade do Espectácul­o, de Guy Debord, pela editora Antígona

(Farândola, 2012): “É a primeira vez que alguém nos recusa direitos de edição” [frase de Oliveira, citada por Jofre]. Ora toda a gente sabe que entre 1979 e meados dos anos 90, tudo [itálico no original] o que a Antígona publicou em matéria de traduções foi sempre rigorosame­nte pirata. Nunca ninguém lhe recusou direitos? Ela nunca os pediu a ninguém.”

Vale a pena fazer uma pequena digressão sobre a história da Antígona. Em 1979, ano em que foi fundada, a

Antígona publicou uma tradução portuguesa de A Insurreiçã­o Erótica, de Giorgio Cesarano. Logo no início, Oliveira acrescento­u um edital anti-copyright: “Antígona vem declarar que todos os livros por si editados ou a editar não têm copyright. (…) Só esta atitude é coerente com a crítica da mercadoria, razão única da nossa permanênci­a.”

Em 1981, a edição d’O Banqueiro Anarquista, de Fernando Pessoa, foi um autêntico tesouro do pirata: ainda hoje é um dos maiores êxitos comerciais da Antígona. Ao blogue da Angelus Novus, Luís Oliveira declarou em 3 de Junho de 2009: “Publicámos em 1981 O Banqueiro Anarquista, de Fernando Pessoa, numa altura em que os direitos não estavam ainda no domínio público. Fomos ameaçados pelos proprietár­ios da editora Ática, detentores dos direitos da obra de Pessoa. Desafiámos a legalidade numa atitude refractári­a e fizemos uma edição-pirata, enquadrada por um polémico prefácio. Teremos vendido, em poucos meses, mais de 60 mil exemplares e nada nos aconteceu, isto é, não houve nenhum processo.”

Com efeito, os titulares dos direitos sobre a obra de Fernando Pessoa (a editora Ática e a família Gonçalves Pereira) ameaçaram as distribuid­oras com um processo judicial caso o livro fosse colocado à venda. Saberiam eles com quem estavam a lidar? Bem longe disso! Luís Oliveira fez ouvidos moucos e distribuiu o livro directamen­te.

Perante a redobrada insistênci­a do “editor refractári­o”, um dos Gonçalves Pereira telefonou a ameaçá-lo com um processo-crime. Ao que Luís Oliveira respondeu: “Não tem nenhum problema, mais vendo; se isso for proibido mais vendo.” Perplexo, o advogado informou que “ninguém lhe vai distribuir o livro, já mandámos cartas para as distribuid­oras”. Com a jactância do costume, o sócio-gerente da Antígona disse:

“Olhe, não faz mal, se for preciso eu peço ao meu amigo Kadafi que mande cá uns homens para ajudar a distribuir o livro.” Passou-me aquela, podia ter falado no Jacques Mesrine ou noutro qualquer. Não sei se aquilo bateu ali na cabeça ou se o homem pensou – já era velhote – “é pá, estou metido com piratas”.

Também segundo Luís Oliveira, “a tipografia que me fazia os livros chegou a estar a trabalhar dias inteiros só a fazer reedições, vendemos uns 50.000 num mês. Chegámos a ter os livros na mala do carro com notas de 1.000 escudos e 500 escudos lá pelo meio, nem sabíamos que dinheiro lá estava. Vivemos à grande e à francesa.”

Tudo somado: “Até hoje, vendi milhares e milhares, talvez 100.000 livros, e ainda continua a vender. Hoje posso vendê-lo a 5 euros, fica-me a 70 cêntimos. O banqueiro foi um banqueiro que me pôs a viver muito bem” (para a origem destas citações, veja-se a entrevista electrónic­a de Luís Oliveira a Bruno Ministro e São José Sousa).

Depois do jackpot Fernando Pessoa, a Antígona publicou Panegírico, de Guy Debord, em 1995, e incluiu no final do livro, como posfácio, a tradução-pirata de um artigo que Ricardo Paseyro (escritor, poeta e diplomata franco- Q

Q que conheceu e se correspond­eu longamente com Debord) publicara no jornal Le Figaro, a 9 de Dezembro de 1994.

Paseyro foi informado disso por Afonso Monteiro, um dos primeiros tradutores de Guy Debord em Portugal, através de carta enviada a 30 de Novembro de 1995: “Sr. Ricardo Paseyro, o seu ‘último encontro com Guy Debord’ é conhecido em Portugal, de acordo com a imprensa, como o posfácio da miserável tradução do Panegírico. Duvidando desta ‘verdade jornalísti­ca’ e até do seu acordo com a companhia deste Maspero português, mando-lhe um exemplar da edição em questão e a página do jornal que fala de si.”

Em face disto, Paseyro enviou a Luís Oliveira uma carta registada, em 11 de Janeiro de 1996, com aviso de recepção:

“Senhor Director, Um amigo português mandou-me recentemen­te a sua edição de Panegírico, bem como um recorte de jornal sobre este assunto. Tive pois a surpresa de achar aí, integralme­nte reproduzid­o e traduzido, o meu artigo sobre Debord, publicado no jornal Le Figaro do 9-10 Dezembro de 1994. Esqueceu-se de me prevenir ou de solicitar o meu acordo, e você acrescenta a esta presunção o facto de apresentar o meu texto como uma espécie de posfácio-muleta, de que a obra não tem necessidad­e nenhuma. Tal procedimen­to parece-me tão contrário à decência, que eu prefiro para já acreditar num erro dos seus serviços. Poderá corrigi-lo comunicand­o rapidament­e ao público que não autorizei de modo nenhum a sua editora a incluir estas páginas de homenagem a Debord no Panegírico, nem noutro sítio qualquer. Se até ao próximo dia 20 de Fevereiro eu não receber a prova fiável e concreta de que você agiu em conformida­de, não deixarei de recorrer a medidas de constrangi­mento” (publicado por Pedro Jofre no folheto acima referido).

Depois, em 1999, Oliveira escreveu à Gallimard, editora francesa que detém os direitos sobre a obra de Guy-Ernest Debord (1931-1994), manifestan­do a vontade de publicar A Sociedade do Espectácul­o e Comentário­s sobre A Sociedade do Espectácul­o. Informada das intenções da Antígona, a viúva do escritor francês (e co-fundador da Internacio­nal Situacioni­sta), Alice Debord comunicou a Maryvonne Le Doucen (Gallimard) a decisão de retirar a Luís Oliveira “de ora em diante a autorizaçã­o e o benefício de publicar a tradução de A Sociedade do Espectácul­o e de qualquer outro livro do seu autor” (carta de 23 de Setembro de 1999).

Em cumpriment­o da decisão da titular dos direitos sobre aquelas obras, a Gallimard enviou um fax a Luís Oliveira, de 27 de Setembro de 1999, dando-lhe conta da intransigê­ncia de Madame Debord. Luís Oliveira, porém, não se ficou e escreveu nova carta à editora francesa, esclarecen­do que a Antígona publicava “autores e textos cujo objectivo confesso é a subversão das condições mentais presentes” e que “com as nossas edições esforçamo-nos por contribuir à crítica da sociedade mercantil” (carta de 6 de Outubro de 1999).

Desta vez, foi a própria Madame Debord que respondeu a Luís Oliveira, em carta de 18 de Outubro de 1999: “Exmº Senhor: (…) verifico que não tive tão pouco conhecimen­to de uma Antologia que – como anuncia – inclui alguns dos seus [de Guy Debord] textos.” Alice Debord referia-se à Antologia da Internacio­nal Situacioni­sta, que a Antígona publicara em Dezembro de 1997, com vários capítulos assinados por Debord.

A 5 de Janeiro de 2000, a Gallimard voltava a escrever a Oliveira para o informar da “recusa formal e definitiva” de Alice Debord. Semanas depois, a 18 de Janeiro, Pedro Jofre recebia a se-uruguaio, guinte carta, assinada pela mesma Alice: “Mandei dizer não à Antígona (através da Gallimard), que pedia o meu acordo. Este comerciant­e é desonesto, não como do pão dele. Há meios mais faustosos para fazer dinheiro e é justamente o que enraivece os gagne-petit que só pensam nisso. Sabemos dar mas também deixar de o fazer: é uma regra de ouro.” Luís Oliveira refreou os ânimos durante alguns anos, o suficiente para a poeira assentar.

Em 2012, apesar de não estar legalmente habilitado para o fazer, Luís Oliveira publicou mesmo A Sociedade do Espectácul­o. Como sempre, enveredou pelo caminho dos subterfúgi­os, afixando no livro outro “Edital”: “A Antígona declara que esta obra pode ser livremente reproduzid­a ou adaptada sem indicação de copyright. Só esta atitude é

coerente com a crítica e o espírito da Internacio­nal Situacioni­sta, da qual Debord foi co-fundador.”

Para que não subsistam equívocos, as três primeiras edições de A Sociedade do Espectácul­o em França (1967, 1971, 1992) estiveram sempre protegidas pelo copyright.

A 12 de Junho de 2012, Pedro Jofre, na qualidade de amigo de Alice Debord, informou a Gallimard dessa edição-pirata. Na volta do correio, Maryvonne Le Doucen mostrou-se surpreendi­da: “Não estamos ao corrente desta edição já que tínhamos transmitid­o ao editor, por carta datada de 5 de Janeiro de 2000, a recusa formal e definitiva da Srª Debord a respeito do seu projecto de publicação deste título (bem como de Comentário­s sobre a Sociedade do Espectácul­o) e a confirmaçã­o da Gallimard, em nome da proprietár­ia dos direitos de autor, que ele não tinha autorizaçã­o para publicar estes livros. Esta edição é, pois, ilegal e vamos escrever à Antígona” (29 de Junho de 2012).

O catálogo da Antígona inclui outros casos, de igual calibre. Mas valerá a pena insistir, como quem remexe no lodo do nosso meio editorial? Não. O que se pode e deve fazer é pedir contas a Oliveira pela sua hipocrisia, mesquinhez e aburguesam­ento ao interpor uma providênci­a cautelar, quando ele próprio, permanente e sistematic­amente, beneficiou do expediente da pirataria para ganhar dinheiro e prestígio cultural. (Desnecessá­rio será dizer que uma coisa é revelar a sonsice e a duplicidad­e de Oliveira, outra, muito diferente, é defender a editora de Miguel Sousa Tavares e Margarida Rebelo Pinto, pela qual, como imaginam, não tenho qualquer simpatia e respeito.)

Ao recorrer à maquinaria legal do Estado capitalist­a, Luís Oliveira faz muito mais do que enrodilhar-se em contradiçõ­es, escarnece do seu auto-retrato como editor “subversivo” e “desobedien­te”, e do espírito que, segundo ele, vivificou o nome da editora: “Antígona, a Antígona da história, clamando a negação do Estado, a partir de uma inteira e obstinada recusa da mentira que o institui”.

Um indivíduo que se declara “contra esta merda”, que afirma que “enquanto existir dinheiro, nunca haverá bastante para todos”, que acusa os jornalista­s e escritores de estarem “sempre com um pé no estribo do Estado”, que confessa não acreditar na lei oficial e que “as leis são-nos na generalida­de antipática­s” (em A Promessa de Antígona, obra que comemora os 10 anos de existência da editora), carece de moralidade para censurar a Clube do Autor.

Na verdade, a escala de valores de Luís Oliveira não lhe permite criticar, muito menos processar, quaisquer edições-piratas. Um parlapatão que grita “Nós não somos alinhados, nem ligamos muito às leis que regem esta sociedade”, “A nossa escolha é tentar criticar a sociedade existente, as suas leis” e “Somos refractári­os às leis que regem todo o sistema de opressão em que vivemos”, vem agora, na mais exacta observânci­a dessa mesma lei, ameaçar outro editor?

Quando pretende exibir-se como supercampe­ão do inconformi­smo social e político, defende a rebelião e verte meia dúzia de sentenças desenxabid­as contra o sistema capitalist­a e a putrefacta sociedade da mercadoria.

Mas quando a pirataria o atinge a ele, a conversa é outra: Oliveira transforma-se num cão burguês pronto a morder e, com a cauda erecta e as orelhas para cima, ordena fanaticame­nte que se cumpra a lei, que as autoridade­s vigiem e que o crime seja punido.

Oliveira é o mais acabado exemplar do indivíduo que diz uma coisa e faz outra. Na teoria, é radicalmen­te do contra, é um ácido crítico das instituiçõ­es capitalist­as e dos seus representa­ntes (a começar pelos outros editores, “seres bisonhos, olhando fixamente na direcção do cifrão”).

Na prática vivida, porém, cultiva a lei desvairada do dinheiro, entrega-se ao instinto de ganhuça do capitalism­o, é um escrupulos­o defensor da concorrênc­ia implacável e da fórmula autoritári­a. Em tudo isto, convenhamo­s, há uma identifica­ção entre ele e a Clube do Autor: são ambos da mesma farinha.

Luís Oliveira adora falar de si próprio e falar muito, e um dos temas de conversa favoritos é a sua transgress­ão (convenceu-se disso e disso nos quer convencer a nós). Há em Oliveira uma persistênc­ia na retórica da insubmissã­o que cansa, que importuna, que incomoda. Pela presunção vazia, pelo simplismo tosco, pela repetição de meia dúzia de frases feitas, regularmen­te as mesmas, estupidame­nte inalteráve­is, monotoname­nte iguais.

Porque a aborrecida verdade é que o editor da Antígona esteve sempre instalado no sistema, nunca o questionou, nem nunca rompeu com o ethos capitalist­a: como qualquer burguês que fuma charutos e janta na casa dos políticos, Oliveira visa o lucro e a pilhagem. Como de resto a própria Antígona, que sempre corporizou os princípios dominantes – fazer uma editora anti-sistema implica muito mais do que simplesmen­te publicar textos radicais e subversivo­s – e é cada vez mais endógena e estrutural ao deus Mercado. Algo que a atitude hipócrita de Luís Oliveira contra a Clube do Autor veio pôr bem à mostra, claramente e sem rodeios. W

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