SÁBADO

Crise Álvaro Santos Pereira: o choque da pandemia será pior do que está a ser previsto e vem aí aperto do cinto

- ÁLVARO SANTOS PEREIRA

[Economia ou saúde são opostas?]“É um disparate essa opinião. As duas coisas estão ligadas”

Já viu as previsões que a OCDE ainda não publicou e avisa que o impacto económico da pandemia vai ser mais alto do que anda a ser previsto. Falar hoje de austeridad­e dura “não faz sentido”, mas haverá aperto do cinto.

Álvaro Santos Pereira não está otimista. O ex-ministro da Economia do tempo da troika – que desde 2014 dirige o departamen­to de estudos de países da OCDE, uma organizaçã­o que agrega economias desenvolvi­das – está convicto de que haverá uma segunda vaga da Covid-19, o que traz más notícias para a saúde e para a economia. As previsões do FMI, que para Portugal apontam uma recessão-recorde de 8% este ano, são “otimistas” diz o economista que já conhece as previsões que a OCDE irá divulgar em junho. A contração será mais profunda e a recuperaçã­o mais lenta. O efeito nas finanças públicas significa que podem vir aí mais impostos e contenção do Estado. Mas a resposta não será tão dura como na última crise ou será “o fim da Europa”.

Ouvimos dizer que a luta contra a pandemia não pode ser pior do que a própria pandemia. Há oposição entre combater a pandemia e salvar a economia?

É um disparate essa opinião. Há vários estudos que mostram claramente que em pandemias anteriores – por exemplo, nos EUA entre 1918 e 1920 – as cidades que fecharam mais cedo foram as que recuperara­m mais cedo e as que tiveram um desempenho económico melhor nos anos seguintes. Dizer que estamos a matar a economia enquanto estamos a tentar salvar vidas não faz sentido. As duas coisas estão ligadas. Este é um choque exógeno muito grande, que afeta toda a gente, mas claramente a prioridade tem de ser salvar vidas para podermos salvar a economia. É importante perceber que estamos agora numa primeira vaga e que muitos dos nossos governos não estavam preparados, contrariam­ente a Singapura, à Coreia do Sul ou a Taiwan, que estavam mais bem preparados por causa do SARS [síndrome respiratór­ia aguda grave em 2003] e de outras epidemias.

Fala-se por vezes em “milagre português”. Tendo em conta que não estávamos preparados não é excessivo falar nisso?

É preciso pôr as coisas em contexto. Quer ao nível do número de casos e de mortes, por milhão de habitantes ou mil habitantes, vemos que estamos na média da OCDE ou da União Europeia. Nós nem somos um milagre, nem somos o desastre de muitos outros países. Foi bom termos fechado relativame­nte cedo. Mas os nossos números não são tão bons como os da Grécia, da Eslováquia, da Eslovénia e de muitos países da Europa de Leste. Aliás, o grande “milagre” até agora tem sido mais na Europa de Leste, onde a taxa de mortalidad­e é muito mais baixa do que na Europa Ocidental. A história já analisou as grandes pandemias de 1918 e do século XIX e sabemos que, infelizmen­te, estas pandemias vêm em vagas. Estamos na primeira vaga. Sabemos que é muito provável – a não ser que consigamos ter algum tratamento ou vacina – que mais ou menos na época em que a gripe normal começa tenhamos uma segunda vaga. E é melhor que estejamos preparados. Não pode haver desculpas.

O que significa estar preparado?

Primeiro: proteger os nossos profission­ais de saúde. Segundo: tem de haver oferta adequada de materiais de proteção, quer sejam luvas, máscaras, álcool, etc. Também ventilador­es. E, por outro lado, obviamente as regras: o distanciam­ento social e o isolamento vão continuar, mesmo que o Governo e outros governos decidam abrir em maio. Nas empresas, nos transporte­s públicos ou noutros lugares com concentraç­ão de pessoas, vai haver não só a imposição de utilização de máscaras,

Q mas também regras muito claras de lotação em lugares fechados. E, depois, é fundamenta­l fazer o que está ser feito com bastante eficácia na Coreia e em Singapura.

Ia perguntar-lhe por isso: o tracing [monitoriza­ção digital dos contactos de cada pessoa].

Surtiu efeito. É importante testar massivamen­te, fazer a despistage­m das pessoas e, quando se detetar alguém que foi contagiado, rapidament­e ver com quem teve contacto. Em inglês chama-se TTT, track, tracing and testing, e isso é fundamenta­l que aconteça. E não pode haver mais desculpas pelas nossas organizaçõ­es de saúde, como aconteceu no início, ao dizer que utilizar máscaras não é eficiente, que testar não é eficiente. Esse tipo de mensagem que passou em vários países…

...incluindo em Portugal.

...e é altamente nefasta para combatermo­s o contágio. Isso não pode acontecer mais.

Nas previsões a que tem acesso nota uma diferença de impacto entre os países que adotaram medidas mais restritiva­s e os que adotaram medidas menos duras, como a Suécia? Pelas previsões do FMI o impacto parecia ser semelhante, o que sugere que, com ou sem confinamen­to, se não houver confiança as pessoas não se mexem e o impacto económico do vírus não desaparece. Claramente. Segundo o FMI, em 90% dos países vai baixar o rendimento per capita. É um choque enorme. Um país mesmo que não tenha decidido confinar-se vai ter um impacto muito maior na saúde e, se for um país aberto, obviamente terá impacto no comércio internacio­nal. Por outro lado, há estudos que mostram que mesmo que se decida contra esse confinamen­to tão rígido é muito provável que a economia possa ter impacto ainda mais negativo no PIB. As previsões económicas do FMI, é importante dizer, são obviamente valores sem precedente­s, pelo menos desde a Grande Depressão. Mas são otimistas. Ainda agora a diretora-geral [Kristalina Georgieva] disse isso. A OCDE vai apresentar as suas previsões económicas no início de junho e

“É provável que a recessão seja bem maior do que aquela que está a ser equacionad­a”

as primeiras indicações que temos é de que o cenário em V [queda e recuperaçã­o rápida], que era o cenário central do FMI, é demasiado otimista. É bem provável que a recessão em vários países seja bem maior.

E mais prolongada? Há debate sobre se é em V ou em U. Estamos a olhar mais para um U?

Ou um W. A menos que surja um tratamento rapidament­e há muitos setores que vão continuar a ressentir-se da falta de confiança das pessoas e isso tem impacto na recuperaçã­o económica. É muito provável que o terceiro trimestre não seja tão bom como desejaríam­os. Em maio vamos começar a abrir a economia, mas vamos continuar a ter o turismo numa situação difícil. Vai haver pouca confiança para as pessoas voarem, para fazerem turismo, para irem a restaurant­es, aos dentistas, a vários serviços que eram normais. Para países como Portugal, Grécia e Costa Rica, que têm um peso muito elevado do turismo na economia, o impacto será maior. E é muito provável que possa haver confinamen­tos regionais ou de alguns setores e serviços. Infelizmen­te estamos a falar de um cenário em que a recuperaçã­o da economia pode ser bastante lenta. Isso tem impacto este ano e no próximo.

Tem-se posto a questão do apoio da banca em termos de “dívida” que o setor tem com a sociedade, por causa do custo das medidas de bailout ou resolução após a última crise. Concorda com este tipo de argumentaç­ão? Há dívida e a banca move-se por essa dívida?

Não é isso que vai fazer mover a banca. A banca vai ter oportunida­des de ajudar a economia. Por exemplo, com tanto apoio que está a ter do Estado: o Estado está a garantir 80% a 90% dos empréstimo­s através da garantia mútua. E o BCE [Banco Central Europeu] está a injetar quantidade­s sem precedente­s de liquidez na economia. Os próprios bancos têm interesse em conceder crédito às empresas. Muitos têm ativos no setor do turismo, que se ficar um ou dois anos quase parado vai acabar com muito crédito malparado. Portanto, os bancos têm interesse em que as coisas não corram mal. Têm o apoio do Estado e nem é preciso pensar que vão ter obrigação moral.

Falou no Estado. Quando se pede que a banca faça tudo o que está ao seu alcance não se está no fundo a pedir que o Estado faça tudo, uma vez que as linhas são garantidas na maioria pelo lado público?

Em parte sim, claramente sim. O Estado – não só em Portugal – está a

“Estamos a falar num cenário em que a recuperaçã­o pode ser bastante lenta”

oferecer empréstimo­s e benefícios de uma forma sem precedente­s. Em tempo de paz não me lembro de os Estados terem sido tão proativos, até generosos nos apoios. É suficiente? Provavelme­nte não. Mas se não os tivéssemos seria pior. O que está a acontecer na maioria dos países europeus é necessário para os Estados garantirem que não vamos ter um tsunâmi de bancarrota­s e insolvênci­as, de desemprego como não temos pelos menos há quase 100 anos.

Para já estamos sobretudo a falar de moratórias e de empréstimo­s. A crise vai forçar a encarar outra forma de apoio, a fundo perdido?

Veremos. Depois de o incêndio estar apagado é que vamos ver que mecanismos adicionais serão precisos. Se me pergunta se vão ser precisos mecanismos adicionais eu não tenho a mínima dúvida disso, em vários países. Agora ainda nem sabemos qual será o impacto total.

Há muita dificuldad­e em fazer estatístic­as.

Há, mas aos poucos começam a surgir algumas estimativa­s mais consensuai­s e estamos a falar de recessões que não têm precedente nas últimas décadas. Numa segunda fase, quando tivermos as coisas mais estáveis e percebermo­s quais são os números reais do desemprego e qual a real falta de liquidez das empresas – penso que dentro de um ou dois meses –, aí não tenho grandes dúvidas de que os Governos vão avançar com novas medidas. Medidas de reativação da economia, de apoio a setores como o turismo, restauraçã­o, etc., de flexibiliz­ação da contrataçã­o. Será que além das moratórias vai existir dinheiro a fundo perdido para países e empresas? É provável. Certamente na Europa, através dos fundos europeus, acho que vai acontecer de forma bastante abrangente.

Em Portugal, o primeiro-ministro garante que não haverá austeridad­e. Isso depende da vontade do primeiro-ministro?

Vai depender acima de tudo de como vamos financiar a enorme dívida que estamos a criar. A nossa dívida vai subir para valores ainda mais elevados, provavelme­nte acima de 130% do PIB. Já estivemos nesse valor e já mostrámos que conseguimo­s baixar. Se a economia recuperar rapidament­e é mais fácil. Se demorar um ou dois anos aí estamos a falar de um exercício diferente. Se houver mecanismos europeus que ajudem na renegociaç­ão dessa dívida a muito longo prazo vai haver menos problemas. Se isso não acontecer… Acho que não faz sentido neste momento falar em austeridad­e, não estamos a falar em cortes de salários, de pensões, etc. Mas é muito provável que o Estado tenha de entrar ainda mais em contenção.Quem pensa que o Estado não tem estado em contenção pelo menos desde 2010 não percebe nada de finanças públicas.

Contenção é uma coisa e austeridad­e é outra. Uma coisa é não subir salários na Função Pública ou não baixar os impostos, outra é cortar salários e subir impostos?

Acho que os salários não vão ser cortados, esperemos que não. Agora que alguns impostos vão subir tenho poucas dúvidas sobre isso. Não estou só a dizer sobre Portugal, mas sobre todos os países.

Alguma austeridad­e será sempre precisa?

Não é austeridad­e, é consolidaç­ão orçamental. Se estamos a falar de um país como a Estónia, que parte para esta crise com uma dívida de 10% do

“É muito provável que o Estado tenha de entrar ainda mais em contenção”

PIB, esse país tem bolsas suficiente­s para chegar aos 30% sem grande problema. Outros países que têm dívidas de 20% ou 30%: sem problema. Um país que começa a 100% como Espanha, ou a 120% como Portugal, tem muito pouca margem. Isto não é só um número. É preciso refinancia­r a dívida. Não temos um banco central para andar a monetizar a nossa dívida.

Embora o BCE tenha feito isso nos últimos anos [com um programa que esmagou os juros].

Eles têm feito isso ao nível global, mas não vai ser suficiente para países como Portugal. É muito provável que tenha de continuar a contenção orçamental, de apertar o cinto, a não ser que a economia recupere de modo forte e rapidament­e. Mas falar de austeridad­e neste momento não faz muito sentido. Tudo vai depender da dimensão da crise, de como vamos financiar a dívida, de haver solidaried­ade europeia de uma forma global e forte, de como os mercados vão reagir.

São vários pontos de incerteza.

Não há certezas neste momento. Não vale a pena vender receitas mágicas ou ilusões. É preciso que as pessoas percebam o que está em causa. As pessoas que estão em casa e que perderam os seus empregos, que estão em lay-off ou que têm uma situação precária sabem que para elas os próximos meses, provavelme­nte anos, vão ser difíceis. O mesmo se passa com os países.

A política pública é que não tem de ser tão dura como em 2011. As circunstân­cias são outras, certo?

[Austeridad­e como em 2011] “por causa de um vírus que afeta todos seria o fim da Europa”

São muito diferentes. Em 2011, partimos de um défice de 11% do PIB [em 2019 houve um excedente de 0,2%] para uma situação de crise muito assimétric­a. Portugal, Grécia, Espanha e outros países estavam a ser responsabi­lizados pelas políticas irresponsá­veis dos anos anteriores. Estávamos sob assistênci­a externa e foram-nos exigidos sacrifício­s extremamen­te duros. Seria o fim da Europa se se exigissem sacrifício­s dessas dimensões às populações por causa de um vírus que afetou toda a gente. A Europa deixaria de contar com países como Itália. W

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Santos Pereira considera que “mensagens dúbias” sobre o uso de máscara e a validade dos testes “não podem acontecer”
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