OS NEGÓCIOS DA PANDEMIA
...e ventiladores. Produtos com defeito, intermediários desonestos, preços extremados e algumas empresas portuguesas a faturar milhões.
Investigação aos contratos de muitos milhões de euros com autarquias, às empresas e intermediários que surgiram durante a Covid-19
Apandemia da Covid-19 provocou uma crise de saúde pública e financeira – mas também trouxe oportunidades de negócio a várias empresas. Com a família infetada após umas férias em França e com o seu setor em crise, Lourenço Rosa, diretor comercial da empresa de brindes Enerre, assustou-se e usou os contactos que tinha na China para se aventurar na venda de equipamento de proteção individual (EPI). O desafio foi o transporte. Fretou aviões, cada um com custos entre 700 mil e 2 milhões de euros. “Isto pode ser uma boa operação financeira, mas estou a correr um grande risco. Basta um avião não vir cheio para os prejuízos serem fatais”, explicou à SÁBADO. Para já, não lhe correu mal: em um mês o que era uma empresa familiar fez mais de 13 milhões de euros com contratos públicos, o triplo do total que faz num ano em vendas.
E mais milhões de euros, se se somarem os privados. O primeiro cliente foi o Hospital Lusíadas, num acordo firmado no início de março. Seguiram-se outros hospitais privados e públicos: Lusíadas, CUF, Évora, Faro e Garcia de Orta. “Nós fornecemos os materiais a que eles têm dificuldade de acesso”, explica Rosa.
Mas o primeiro cliente público foi a Câmara Municipal de Cascais. A 17 de março, na véspera de Portugal entrar em estado de emergência, foi feito o primeiro ajuste direto, de 361.500 euros (+IVA) para fornecimento de “máscaras e luvas de proteção Covid-19”. Quatro dias depois, concretizou-se um novo contrato: 1.178.900 euros para “material de proteção e termómetros”. No total, Cascais fez 11 contratos com a Enerre no valor total de 8,8 milhões de euros (o negócio atinge os 13 com outras entidades públicas), mais de 90% do investimento da autarquia até ao momento – e de acordo com fontes do executivo camarário, não serão os últimos. Está em cima da mesa uma série de novas compras à Enerre, uma delas de 410 mil euros em fatos de proteção.
O negócio em Cascais teve outra vantagem para a Enerre: abriu portas para mais contratos públicos e o transporte de mais de 500 toneladas de material da China. Com o auxílio de seis aviões, a empresa fez negócios com o Estado-Maior-General
A QUILABAN TEM 125 CONTRATOS PÚBLICOS ESTE ANO. LUCROU 14,5 MILHÕES EM QUATRO MESES
das Forças Armadas (EMGFA), os municípios de Lisboa, Albufeira, Albergaria-a-Velha e Aveiro, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, entre outros. “Chegámos à Enerre através do portal da contratação pública. Vimos que já estavam a fornecer equipamento de proteção individual”, explicou à SÁBADO o comodoro Paulo António Pires, diretor de Finanças do EMGFA.
A autarquia de Cascais não revela em concreto como chegou à Enerre, salientando apenas que, em todos os negócios que fez, “procurou o mercado e foi procurada pelo mer
cado”, com o “apoio de autoridades públicas”, como o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE). À SÁBADO, fonte oficial do MNE garante que “não indicou a empresa Enerre ou qualquer outra” à Câmara Municipal de Cascais.
O milionário das farmácias
Nos gigantescos negócios propiciados pela pandemia, são muitas as jogadas de bastidores. O antigo presidente da Associação Nacional das Farmácias, João Cordeiro, revelou à SÁBADO que a Quilaban, empresa que lidera, contratualizou dois aviões da Hi Fly para trazer material dos seus fornecedores chineses. “É na China que há produtores. E quem tem contactos leva vantagem”, explica. Apesar de se recusar a dar “informação interna da empresa”, a base de dados Informa D&B mostra quanto é que a Quilaban realizou nos 125 contratos públicos que fez nos primeiros quatro meses deste ano: 14,5 milhões de euros. Isto representa mais do dobro do valor feito nos contratos com o Estado em 2019 (6,2 milhões de euros). Há ainda outro pormenor: em 2019, verificaram-se 379 contratos públicos, ou seja, com
APENAS 10 EMPRESAS DOMINAM DOIS TERÇOS DAS ADJUDICAÇÕES DO ESTADO PARA A COVID-19
bem menos contratos, a Quilaban já fez este ano negócios muito mais avultados. E este não é o único campo de ação da empresa: “Faço mais negócios no privado com reagentes, por exemplo”, explica João Cordeiro.
Voltando aos negócios públicos, o contrato de maior valor, com a Direção-Geral da Saúde (DGS), é de 7 de abril: 9 milhões de euros por máscaras tipo II respirador FFP2/FFP3, com “urgência imperiosa”. Contudo, no prazo de execução lê-se: “268 dias”. Cordeiro garante que isso é falso: “Quando assino um contrato não estou a ler, tenho uma base de Q
Q confiança com os meus gestores. Mas garanto que esse prazo não aparece no contrato que assinei. Se fosse 268 dias seria aberrante, não faria sentido, este material é para ontem, é urgentíssimo.” De acordo com o empresário, todo o produto está “pronto e produzido há 15 dias”. “O problema agora é colocar cá o produto. Os dois aviões da Hi Fly não conseguem arranjar horário disponível para voltar. Até já tivemos de mudar do aeroporto de Xangai para outro a 1.600 km de distância.”
Intermediário vendia pneus
A Enerre e a Quilaban estão entre as 10 empresas que detêm dois terços do mercado dos contratos públicos relativos à Covid-19, cujo universo é de 157,6 milhões de euros, a grande maioria por ajuste direto e celebrados em março e abril. Tal como a Enerre, outra destas 10 empresas está fora do setor da saúde: a Clothe-Up, uma têxtil de Guimarães, que se dedica ao design, desenvolvimento e fabrico de vestuário para marcas internacionais de moda. “Com a pandemia e o consequente fecho do mercado externo, a empresa voltou-se para os equipamentos no âmbito da saúde, criando modelos próprios, nomeadamente os fatos de proteção individual”, explicou fonte oficial da empresa.
Os resultados são significativos: com os cinco contratos firmados em abril, totalizaram 8 milhões de euros, quase o triplo que fariam num ano (em 2018 foram 3 milhões). O contrato de maior envergadura é do dia 23 de abril, com a DGS, de €7.816.000, para “a aquisição de fatos de proteção impermeáveis”. “O contacto entre a DGS e a Clothe-Up foi efetuado por indicação do Infarmed na sequência da certificação de diversos produtos, não apenas fatos de proteção individual”, acrescentou a fonte da empresa à SÁBADO.
Mas há outros casos. Se procurar na Internet o número de telemóvel da Cosmocentauro, não vai encontrar. Muito menos há um site ou uma página de Facebook. No Portal da Justiça, lê-se que a empresa de Paredes é uma unipessoal em nome de
Carla Loureiro. Colocando na Internet a morada da Cosmocentauro surge o nome de outra empresa com o mesmo endereço, a Serviço Auto, que comercializa pneus. Esta tem número de telefone e quem atendeu foi um funcionário, que ficou de arranjar um contacto de Carla Loureiro. Meia hora depois, ligou-nos Russel Matos, o marido. “Eu é que faço a gestão da empresa.”
A Cosmocentauro é um bom exemplo dos novos negócios saídos da pandemia. Sendo uma empresa de “comércio por grosso e a retalho de pneus”, além de calçado e vestuário, e ainda “oficina de serviços de assistência mecânica a veículos ligeiros”, conseguiu vender 11 ventiladores (€121.500) à Comunidade Intermunicipal do Tâmega e Sousa, uma entidade pública que depois os doou ao Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa – este organismo do SNS comprou, depois, outros seis ventiladores à Cosmocentauro (€147.000).
Como é que estes negócios se fazem? Russel Matos diz à SÁBADO que é simples. “Nós estamos habituados a isto, é a nossa praia, fazemos isto há mais de 20 anos.” A empresa, diz, importa produtos da China há muito, tem lá os seus contactos – “temos até um escritório em Hong Kong” –, e foi só passar de pneus para ventiladores. Telmo Pinto foi quem tratou da compra dos referidos 11 ventiladores na Comunidade Intermunicipal.
“Surgiu a possibilidade quando esta empresa contactou o presidente, Gonçalo Rocha, dando conta de que tinha um contacto na China e que nos arranjaria alguns ventiladores”, diz à SÁBADO. Já Russel Matos tem outra versão: “Não procurei ninguém, estava em casa sossegado quando recebi uma chamada.” Os 11 ventiladores saíram a €11.045 cada um e os 6 ventiladores para o hospital custaram €24.500 cada. As duas encomendas distam uma semana (18 e 25 de março). “Se fosse agora seriam a €39 mil cada”,
UMA OFICINA COM COMÉRCIO DE PNEUS IMPORTOU TAMBÉM VENTILADORES PARA O ESTADO
diz Russel Matos para justificar a inflação do mercado.
O negócio dos ventiladores é uma das grandes confusões do mercado. Fora todas as doações (ver caixa pág. 56), só o Ministério da Saúde “adquiriu 1.151 ventiladores”, informa a assessoria de comunicação. “Destes, 73 já se encontram em Portugal.” O que aconteceu aos restantes? A quem foram comprados na China? Por quanto? Onde estão os contratos? Até ao fecho desta edição, o Ministério da Saúde não respondeu a estas perguntas simples da SÁBADO.
Instruções em mandarim
Das próprias adjudicações feitas por hospitais portugueses que constam no portal dos contratos públicos, o Base, não há nenhum documento anexado, como obriga a lei. A única exceção é o Hospital de Coimbra, que desde março tem oito adjudicações de ventiladores e publicou o respetivo contrato de sete. Também a disparidade de preços médios não podia ser maior: vai dos €6.980 que custou cada um dos 50 ventiladores que a Câmara Municipal do Porto comprou diretamente na China (à Shenzhen Prunus) até aos €46.000 que custou cada um dos 25 ventiladores que o Hospital de Coimbra comprou à JSVJ – International Healthcare Consulting, uma empresa de Coimbra. O primeiro foi a 18 de março e o segundo a 6 de abril.
Russel Matos diz à SÁBADO que contactou o Governo português (“Na altura tínhamos capacidade para entregar 300 ventiladores a 11 mil euros”), mas não obteve resposta. O empresário dá uma explicação para o que está a acontecer com alguns destes produtos made in China (houve ventiladores a chegar a Portugal com instruções em mandarim; e nos EUA um estudo recente diz que 60% das máscaras tinham defeitos): “Fabricar na Ásia não é fácil. Você chega a qualquer país da Europa e diz ‘faça-me 500 computadores’.” Na Ásia, tem de chegar lá, pedir os 500 computadores e depois uma amostra de confirmação, um computador, por exemplo, para ver se fazem bem. Só depois avança. Se não corre o risco de virem 500 computadores
A MESMA EMPRESA VENDEU VENTILADORES POR 11.045 E 24.500 EUROS COM DIAS DE INTERVALO
com defeito. Foi o que o Governo fez, encomendou, mas não se preocupou com a amostra, e recebeu aquilo em chinês – e sabe Deus que mais,” diz Russel Matos.
Outro intermediário português, que pediu o anonimato, diz à SÁBADO que, quando a situação epidemiológica explodiu na China, houve uma corrida silenciosa às máscaras. “A China vende para a Europa, mas quando a pandemia começou lá, eles vieram cá recomprar tudo, até porque as fábricas estavam paradas por causa do ano novo chinês. Limparam tudo. Havia chineses em todos os cantos do mundo, alguns mandatados pelo Governo, a comprar. Vinham cá, produto à vista, pago na hora, agilizavam o processo de logística e ia tudo de avião para lá. E a Europa ficou sem produto.”
Quando o surto da Covid-19 passou para a Europa, a corrida começou ao contrário. “Fiz duas importações na China, mas com parceiros de negócios que já tinha, porque fomos inundados com emails de ofertas de máscaras e tudo o mais. Repare que importação significa pré-pagamento a 100% e pôr dinheiro na mão de alguém que não conhecemos... Mais grave do que isso, quando começa a haver falta de máscaras na Europa aparecem aí uns indivíduos, os chamados traders, alguns muito desonestos. Eu fiz a experiência de ligar para dois ou três e percebi que não percebiam nada do assunto. Bastou uma ou outra pergunta técnica, das mais simples que pode haver.”
Um mercado inflacionado
Além de ventiladores, Telmo Pinto, da Comunidade Intermunicipal do Tâmega e Sousa, diz que gastou ainda “cerca de 500 mil euros” em máscaras, luvas e outro tipo de material de proteção individual. “É para distribuir pelos municípios, que depois os vão fazer chegar às IPSS, corporações de bombeiros e centros de saúde.” O responsável diz que “não existe contrato, porque é um fornecimento”, mas revela que o vendedor foi uma empresa de Leiria, a Kit Faraday (vende kits para combate a incêndios). “Era mais barato. Todos os dias recebo emails com ofertas de Q
Q negócios, alguns a dizer que só querem ajudar o País. Começamos a perguntar-lhes o preço e eles querem ajudar o País pelo triplo. Também comprei algum álcool-gel a uma fábrica de tintas a €45 o garrafão de cinco litros. Outros ofereceram por email o mesmo produto a 80 euros”, salienta o responsável.
Uma outra empresa que relocalizou a produção foi a Fontelusa Trading, que comercializa produtos para tratamentos de águas. Mais uma vez, as ligações preexistentes com empresários chineses foram fundamentais. A empresa acabou de ganhar uma adjudicação de 1 milhão de euros com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML). João Pedro Lorena explica à SÁBADO como conseguiram: “Foi uma informação que tive de que havia carência de máscaras na SCML e respondi ao pedido de consulta. Ter sido numa altura crítica em que não havia nada no mercado, e porque conseguíamos agilizar as coisas, permitiu-nos ter o contrato.” A SCML diz que o contrato era de “1 milhão de máscaras cirúrgicas”, ou seja, €1 cada.
A Câmara Municipal de Braga também respondeu à SÁBADO sobre preços: comprou 23.500 máscaras a uma empresa chinesa (Northeast Pharm Trading Company) a €1,85. É um preço muito mais alto do que, por exemplo, a CIM do Tâmega e Sousa pagou por cada uma das 78 mil máscaras cirúrgicas que adjudicou à empresa portuguesa Kit Faraday: €0,59. Ou que a Câmara Municipal de Lisboa (segundo informação que prestou à SÁBADO) pagou pelas 300 mil máscaras que adjudicou à Enerre: €0,49 cada.
A disparidade de preços também sucede nas máscaras FFP2. A CIM Tâmega e Sousa comprou-as a €2,37 cada, enquanto a SCML desembolsou muito mais: €4 por cada uma das 50.000 unidades que adjudicou à Enerre e €4,95 por cada uma das 15 mil que comprou à GLSMED. Esta última, diga-se, é outra das grandes empresas nos negócios da epidemia: quase €35 milhões em máscaras para o Estado. A GLSMED pertence ao Grupo Luz Saúde, que é detido por acionistas chineses – isso explica a capacidade de abastecer o mercado nacional. A Câmara do Porto também pagou €4 à PrestigeHealth pelo mesmo produto. Os preços por FFP2 chegaram a estar a €12 numa farmácia na Nazaré, um de muitos exemplos de especulação de preços denunciados à ASAE.
Desde o início da pandemia, os preços de material relacionado com a Covid-19 não voltaram a ser os mesmos. Se antes de março era possível comprar uma caixa de 50 máscaras cirúrgicas por cerca de 8 euros, a 0,16 euros por unidade, hoje em dia varia entre os 70 cêntimos e
AS ENTIDADES PÚBLICAS NÃO REVELAM O PREÇO UNITÁRIO A QUE COMPRAM MÁSCARAS
€1,50, por exemplo. É a lei básica da economia a funcionar: se a procura é maior que a oferta, os preços sobem.
Um problema de regulação e também de transparência, pois não é público o preço unitário acordado com as empresas na maioria destas adjudicações. As entidades públicas têm-se esquivado à publicação dos contratos e restante documentação ao invocar o Decreto-Lei nº 10-A/2020, que estabelece medidas excecionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo coronavírus. “No estrito cumprimento da Lei, todos os contratos de aquisições de bens e serviços para travar a Covid-19, pelo regime de urgência, puderam ter dispensa de celebração de contrato escrito, mantendo-se, no entanto, contrato que resulta dos procedimentos instrutórios de cada compra”, justifica a Câmara de Lisboa, que conclui: “Importa, ainda, salientar que todos estes processos de aquisição decorreram num momento de profunda desregulação (...) das normais regras de mercado.” Como sempre, numa crise, há sempre alguém que faz bons negócios. W