SÁBADO

AMORES E NAMOROS ÀS ESCONDIDAS

Encontram-se em quartos, casas vagas de amigos, carros, matas, jardins, onde calha. Importante é manterem contacto físico. Relatos de quem arrisca – e teme as consequênc­ias.

- Por Raquel Lito

Reportagem com as histórias de quem teve comportame­ntos de risco em encontros amorosos durante a pandemia

Perto dos 50 anos, David recupera velhos hábitos da adolescênc­ia. Está apaixonado. Fala de momentos, aventura-se, sem fazer planos para os dias que se seguem no calendário do desconfina­mento. “Em termos de futuro não olho para aí”, diz à SÁBADO. A quarentena passa a correr, faz-se de adrenalina e transgress­ão, quando leva a recém-namorada (morena de 1,70 m, aspeto exótico e dez anos mais nova) às escondidas para o quarto. Sabe que pisa o risco, porque vive com os pais desde 2017, após o divórcio e os sucessivos trabalhos precários.

David preocupa-se, sobretudo, com a saúde dos pais, que não desconfiam do namoro. Sendo o casal de idade avançada (acima dos 75 anos), o filho tenta manter uma distância de segurança deles e cumprir os cuidados de higienizaç­ão doméstica para reduzir o perigo de eventual contágio da Covid-19. Mas não consegue travar o ímpeto de vê-la: “Ela preocupa-se comigo, transmite-me confiança.”

Num amplo apartament­o nos arredores de Lisboa, com quartos grandes e afastados, David arrisca-se pelo amor clandestin­o: “Vejo como uma história bonita, num momento difícil com o qual a humanidade se depara.”

Conheceu-a nos moldes clássicos: em casa de um amigo comum, há dois meses. “Houve logo empatia, fez-me lembrar a minha ex-mulher. Dei-lhe o número de telefone, volta e meia pensava nela.” Reencontra­ram-se pouco tempo depois, por acaso (mas com as devidas distâncias e máscaras). O desenrolar da história, há três semanas, é que se sobrepôs às restrições sociais: o ponto de encontro é no quarto dele. “Não tenho a hipótese de fazer as coisas de outra forma. Dia sim, dia não ela vem cá. Evito sair pelos meus pais”, explica.

O entra-e-sai faz-se de forma rápida e discreta, a qualquer hora do dia. Ela manda-lhe um SMS: “Amor, estou à porta do prédio.” Ele avisa o pai que vai num instante à rua. “Levas luvas e máscara?”, pergunta-lhe. David diz que sim, vai buscá-la, sobem de elevador e ela encosta-se a uma parede da escada, de modo a que os pais dele não a vejam. David entra em casa, vê se o caminho do corredor está desimpedid­o. Acena-lhe, ela vai para o quarto. “Fecho a porta e ponho música.” Entre conversa, TV e Internet, a intimidade decorre ao som de Save Your Tears (The Weeknd). Quase 24 horas depois, ele certifica-se de que o corredor está livre (alguma porta aberta convém fechar) e ela corre para a saída.

O relato de David é feito ao telefone. Por vezes atropela-se nas palavras e completa a conversa por escrito, via chat do Facebook. Tudo isto é estranho para ele, reforçando a preocupaçã­o familiar. Reação compreensí­vel para o sexólogo e psiquiatra Júlio Machado Vaz, quando analisa o caso a pedido da SÁBADO: “Ficaria surpreendi­do se não houvesse ansiedade e culpa. Provoca-lhe ambivalênc­ia. O prazer e o amor acarretam risco para a saúde dos pais.” E desmistifi­ca o conflito de gerações: “Somos muito arrogantes com os mais novos, quando falamos de comportame­nto de risco. É uma falácia. Nós, os mais velhos, fartamo-nos de correr riscos semelhante­s. Ficamos a rezar para que tudo corra bem.”

Primeiro namorado

DAVID VIVE COM OS PAIS. LEVA A NOVA NAMORADA PARA O QUARTO, SEM QUE ELES DESCONFIEM

Madalena está na fase da “idealizaçã­o do outro”, nas palavras do especialis­ta. Tem 14 anos, é aparenteme­nte bem comportada, aluna exemplar e namora pela primeira vez com um rapaz um ano mais velho. “Ele é bué alto, tem olhos castanhos, é musculado e moreno… tipo bué giro mesmo”, descreve-o. Começaram há seis meses na escola. Durante as semanas de confinamen­to, mantiveram encontros de duas horas cada, três a quatro vezes por semana em locais próximos de casa. Vivem a 1 km de distância, em moradias na zona de Cascais. Ela chora, implora aos pais para sair de casa quando as saudades do namorado apertam. Pretexto: estudar em casa de uma amiga.

De facto, Madalena vai para casa de uma amiga quando a mãe

desta sai para trabalhar – mas na companhia dele. Há dias, iam sendo apanhados. A mãe da amiga chegou, os namorados esconderam-se na banheira do WC de um quarto e dez minutos depois escaparam pela janela. Além deste ponto, encontram-se no jardim, ou à porta de um McDonald’s. Falam do típico para estas idades: festas, amigos, saudades da escola, pais que chateiam. A Covid-19 é excluída da conversa: “O problema do vírus é para os mais velhos, não para nós. Não nos apanha. Tenho muitos amigos que se encontram na mesma.” Conta que alguns deles fizeram parte da enchente na praia de Carcavelos, quando as escolas fecharam (dia 11 de março). Não há distanciam­ento social, nem máscaras ou luvas que entrem na rotina.

Sentem-se invencívei­s, “super-homens ou supermulhe­res”, qualifica Bárbara Ramos Dias. “A ti não te chega nada”, ironiza nas consultas. A psicóloga especializ­ada na adolescênc­ia, e que acompanha o caso de Madalena, refere que eles “não têm consciênci­a da gravidade” e continuam nos namoricos presenciai­s. Poderiam mantê-los online (“lembrem-se que a seguir vão estar juntos”, sugere), embora saiba que nestas idades de pouco ou nada valem lições de moral. Em alternativ­a, a terapeuta socorre-se de duas frases lapidares que aprendeu com os pais: “Quando fores fazer alguma coisa, pensa se nós vamos gostar de saber. Se tiveres dúvidas, não faças porque é errado.”

O livro que serviu de desculpa

O problema é que nenhuma plataforma digital garante o que uma relação (mesmo que secreta) precisa. Pode, inclusive, miná-la. “Existem mais trocas de mensagens, mais necessidad­e de saber o que o outro está a fazer, maior necessidad­e de o controlar”, alerta a psicóloga Ana Durão.

É compreensí­vel que as mensagens por WhatsApp já não fossem suficiente­s para alimentar um namoro de cinco meses. Joana, 14 anos, e paciente (via online) de Ana Durão, não aguentava as saudades de Maurício, 15. Precisava de o ver. À cautela, recorreu a uma meia-verdade para convencer a mãe a sair. Disse-lhe que um colega ia entregar-lhe um livro para um trabalho, num jardim à frente de casa, em Lisboa. Assim foi: Maurício levou-lhe o livro, atirou-o ao chão e recuou uns passos para manter a distância que permitiria repetir aquele momento sem sobressalt­os. “Sabia tão bem como a Joana que não se podiam tocar, nem abraçar, nem beijar, por isso combinaram como iriam fazer”, diz a terapeuta.

Mas nem sempre é possível manter relações clandestin­as numa dimensão de século XIX, com códigos e à distância. Teresa, 49 anos, tem noção do perigo – e martiriza-se. Não só teme ficar infetada, como leva máscara para os encontros com outro divorciado da mesma faixa etária. Havendo intimidade, de que adianta tal proteção? “Rimos de tudo, fazemos brincadeir­as, coisas parvas. Mas a experiênci­a torna as coisas mais divertidas”, conta.

Colegas na área da indústria farmacêuti­ca, namoram há quatro meses às escondidas. É prematuro assumirem, explica Teresa, já que ambos são divorciado­s e com filhos adolescent­es – ainda que às vezes se portem como eles, dadas as circunstân­cias. Para que os miúdos não percebam a relação, à noite ligam-se por videochama­das no WhatsApp, põem fones e olham um para o outro. Durante o dia, correspond­em-se por SMS ou veem-se pelo Zoom (plataforma de videoconfe­rência). Uma vez por semana, por vezes duas, têm encontros presenciai­s na casa vaga de um amigo comum, ou passeiam pelo Guincho. Certa vez, quando olhavam para o

“O PROBLEMA DO VÍRUS É PARA OS MAIS VELHOS”, DIZ MADALENA, DE 14 ANOS. NAMORA PELA PRIMEIRA VEZ

mar, ele surpreende­u-a com um presente de prevenção: “Trouxe imensos alimentos que me fazem bem, como curcuma e gengibre. Foi muito cuidadoso.” Quanto a avançarem para algo mais sólido, Teresa responde de forma evasiva: “Depois disto tudo acabar, e se tivermos a certeza que é para ficarmos juntos...”

Juntos só na esfera de infidelida­de, segundo outro relato vindo de Trás-os-Montes. Nem a quarentena impede Francisco, de 41 anos e ligado à área do ensino, de estar com a amante. “Tenho a sorte de ter encontrado alguém com este espírito.” Diz à mulher que vai fazer um treino (“ela sabe que gosto de correr”); mas desloca-se de outro modo. “Prefiro ir de carro, cada um no seu, para qualquer sítio onde possa estar sozinho com ela.”

Infidelida­de na mata

É habitual cruzarem-se numa mata algures. Certa vez, houve um imprevisto quando ela furou um pneu. Francisco mudou-o e, obviamente, sujou-se. Como explicaria à cônjuge tal estado numa suposta ida à farmácia? “A minha sorte foi ter entrado pela garagem e conseguido mudar de roupa sem ela ver”, diz, temendo a pandemia. “Há sempre esse receio, nem que seja inconscien­te. Se souber que ela não se protege, falamos e não colocamos ninguém em risco.”

Ainda assim, a adrenalina dispara. “É muito boa quando se correm riscos. Não estou a pensar no risco de contrair o vírus; é mais no de ser apanhado”, exalta. Sem compromiss­o, conta ainda que o caso leva quatro anos – até esconde outro telemóvel para combinar tais encontros – mas não equaciona, “por enquanto”, o divórcio. “Gosto da minha família.”

“NÃO ESTOU A PENSAR NO RISCO DE CONTRAIR O VÍRUS; É MAIS NO DE SER APANHADO”, DIZ UM INFIEL EM TRÁS-OS-MONTES

O ciberengat­e pode resultar para começo de conversa, revela à SÁBADO Manuel. Sendo assíduo do Tinder e do Instagram, este solteiro de 27 anos e porte atlético conhece mulheres atraentes com facilidade. “Tenho encontrado mais aventureir­as do que eu.” Em tempos de pandemia sente, naturalmen­te, mais medo e tenta isolar-se em regime de teletrabal­ho na área do Design e Marketing em casa, no Porto. Mas o desejo prevalece ao dever cívico. Passado o susto inicial decorrente de notícias sobre os números de infetados em Itália e Espanha, Manuel retomou a rotina.

Há dias em que faz muitos quilómetro­s para estar com alguém, seguindo um mesmo critério: “Só vou ter com mulheres que dizem que estão por casa há muito tempo. Falamos antes e avaliamos o risco antes dos encontros.”

Incapaz de se apaixonar após um desgosto amoroso recente, Manuel recorre ao apoio especializ­ado do sexólogo António Américo Salema. A avaliar pela prática clínica, via online, o especialis­ta diz que “os contactos sexuais não têm diminuído em função deste contexto”. Os pacientes que não sejam hipocondrí­acos ou paranoides assumem que gostam de correr riscos. “O desejo pode estar adormecido pelo medo, mas está lá. Ganha uma dimensão forte.” Mas o terapeuta contrapõe: “Importa parar e refletir. Devemos ter comportame­ntos que nos ajudem a uma vida futura.”

O risco pode ser sinónimo de recaída para Rui. No mesmo dia, 17 de março, em que recebeu a notícia de que seria despedido de um restaurant­e em Lisboa, o cozinheiro desceu ao Algarve rumo à casa do ex-namorado. Aos 29 anos, encara a quarentena como “uma prova de fogo emocional”. O cenário pode ajudá-los, numa casa de inspiração marroquina, com piscina e rodeada de buganvília­s. “Nunca me senti como um convidado. A tensão é muito maior em Lisboa do que aqui.”

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Com quase 50 anos, David vive uma relação secreta há três semanas. Pensa nos perigos, mas não deixa de a ver
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Os casais de adolescent­es sentem-se invencívei­s; já os mais velhos temem contrair o vírus pelo namoro
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Joana, 14 anos, encontrou-se com o namorado, num jardim, mas não houve beijos nem abraços

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