OS CONTRATOS DO MANO PEDRO REBELO DE SOUSA
O Presidente opina sobre o novo hospital da Madeira. O escritório do irmão é contratado para esse caso 13 dias depois. O Presidente apoia com entusiasmo um projeto da Câmara do Porto. A SRS Legal tem meses depois o primeiro contrato com essa autarquia. S
Marcelo responde às coincidências entre as intervenções do Presidente da República e a contratação do escritório de advogados do irmão no Porto e na Madeira
A2 de novembro de 2018, Marcelo Rebelo de Sousa deslocou-se à Madeira. Durante a visita, num encontro com estudantes, disse que o novo hospital da Madeira devia ser “uma realidade rápida” e “uma prioridade”. Assegurou acompanhar “atentamente” o que se passa na região e estar a par da “problemática” do hospital. No dia 15, ou seja, 13 dias depois, foi celebrado um contrato (por ajuste direto com consulta prévia, embora os outros consultados não sejam identificados) com a Sociedade Rebelo de Sousa e Associados (SRS Legal), o escritório de advocacia liderado pelo irmão de Marcelo, Pedro Rebelo de Sousa. O contrato é para “consultoria jurídica no âmbito do procedimento de contratação pública para a construção do Hospital Central da Madeira (HCM)” e lê-se no mesmo que a decisão de adjudicação do secretário regional dos Equipamentos é de 2 de novembro – o dia da visita de Marcelo.
A secretaria regional explica que o processo com o concurso é anterior, pois “o convite data de 12 de outubro de 2018” – mas se a ordem se inverte, a coincidência mantém-se. O contrato tem, naturalmente, um contexto, que a SRS recorda, em resposta às questões enviadas pela SÁBADO: “A SRS Advogados tem um escritório na Madeira, desde há mais de 20 anos, e trabalha com o Governo Regional da Madeira, também desde há largos anos, sendo consultor jurídico de variadas secretarias regionais em processos complexos, não sendo, por isso, um cliente novo.” Além disso, “a SRS tem uma larga experiência não só em contratação pública, mas também no setor hospitalar”.
No entanto, a questão da SÁBADO nunca foi essa: a coincidência de datas será apenas isso mesmo, ocasional. O que foi questionado foi porque é que num caso de tão patente coincidência, não ocorreu à secretaria regional ou ao escritório tentar evitar a aparência (e apenas isso) de um eventual conflito de interesses. A SRS não reconhece sequer que o problema se coloque: “A pergunta não tem qualquer sentido, dada a completa separação entre a SRS e o PR, independentemente dos laços familiares de um dos seus sócios ao PR. Mas, até por causa disso, sempre a SRS atuou com o cuidado absoluto de manter a separação total entre a SRS Advogados e o PR.”
Cultura de conflito de interesses
Mas há quem reconheça aqui um problema. Nuno Garoupa, professor de Direito na Universidade americana George Mason, e especialista em política judicial comparada, e observador atento deste tipo de questões, não estranha as reações despreocupadas dos intervenientes: “Faz parte de uma cultura de endogamia nas elites portuguesas que leva a que Q
Q nunca haja conflitos de interesses. A cultura do conflito de interesses é simplesmente assumida. O que leva a que o que deveriam ser situações absolutamente excecionais não o sejam. Todos percebemos que o PR tem familiares e que estes têm de ganhar a vida. E em Portugal pelos vistos isso implica ter contratos com o Estado. Com uma maior cultura de transparência, este tipo de situações seriam acauteladas.”
Aponta em dois sentidos: “Por um lado, evitar-se sempre a adjudicação direta. Seria sempre preferível um concurso público.” Neste caso, não há nenhum. Os vários contratos públicos da SRS são ajustes diretos e, destes, só um com consulta prévia. Além disso, acrescenta, “idealmente, os familiares do Presidente, ou do primeiro-ministro, deveriam estar sujeitos aos mesmos deveres de transparência que se aplicam a eles próprios”. E sugere a possibilidade de uma estrutura independente para avaliar tais situações, mas remata em tom pessimista. “Não ia resultar”, porque “há uma enorme incapacidade de transparência e pragmatismo, o que torna sempre qualquer solução burocrática e inútil”.
Polémica a que Marcelo escapou
A SRS Legal tem vários contratos por ajuste direto com entidades públicas, desde 2010. Durante o mandato de Marcelo Rebelo de Sousa como Presidente, foram oito em 2019 (o último em dezembro), sete em 2018, um em 2017 e três em 2016, com múltiplas entidades. A prática não é ilegal face à atual lei (de 31 de julho de 2019 e que entrou em vigor nesta legislatura), que só proíbe este tipo de contratos a empresas de que o titular do cargo político detenha mais de 10%. Mas à exceção de três, os contratos reportam à altura em que vigorava ainda a anterior lei. E cujo artigo 8 impedia um “titular de órgão de soberania ou titular de cargo político”, mas também os seus familiares de “participar em concursos de fornecimento de bens ou serviços, no exercício de atividade de comércio ou indústria, em contratos com o Estado e demais pessoas coletivas públicas”. Foi esta a cláusula a pôr sob
“DEVIA EVITAR-SE A ADJUDICAÇÃO DIRETA, SERIA PREFERÍVEL UM CONCURSO PÚBLICO”, APONTA NUNO GAROUPA
escrutínio público os casos dos ministros Francisca van Dunem, da Justiça (cujo marido tem contratos de serviços jurídicos com o Estado, e com o Ministério da Administração Interna); Graça Fonseca, da Cultura (cuja empresa familiar tinha contratos com a Câmara de Lisboa); e Pedro Nuno Santos, da Habitação (também a empresa do pai tinha contratos públicos). Houve ainda o caso do secretário de Estado da Proteção Civil, Artur Neves, que saiu porque o filho teve três contratos com o Estado.
O caso resolveu-se politicamente com um parecer da PGR defendendo que não deveria ocorrer uma interpretação “literal” da lei – a mesma posição que o Governo adotara. E ainda com a alteração legislativa. “A lei é sempre interpretada de forma restritiva”, resume Garoupa. A situação do PR e do escritório do irmão, que encaixa no mesmo modelo, não foi na altura questionada. Mas não só ocorreu, como permitiu que dela decorressem tangentes entre as atividades do irmão e do Presidente.
Além disso, nos casos referidos, a crítica incidia não só sobre a questão jurídica, mas sobre a aparência de conflito de interesses. Sendo que, naqueles casos, nem houve sequer coincidências como a da Madeira.
Ou como a do caso do Matadouro de Campanhã, um projeto da Câmara do Porto para intervir numa zona deprimida da cidade, recuperando o espaço do antigo matadouro industrial. A 21 de janeiro de 2019, Marcelo visita o espaço, a convite do presidente da Câmara, Rui Moreira, e diz que “cada dia perdido no projeto de reconversão do Matadouro de Campanhã é um dia perdido para todos os portugueses” e que é preciso sensibilizar “os que ainda não estão convertidos”.
“Não pode ser contratado”
Quem, na altura, precisava de ser convertido era o Tribunal de Contas (TdC), que atrasava o necessário visto prévio e pedira esclarecimentos extras. Marcelo parecia apontar nesse sentido, ao questionar: “Como é que depois os juristas, burocratas e tecnocratas enquadram esta realidade de uma forma que a seus olhos não violente os princípios constitucionais? Isso parece-me, apesar de tudo, fácil de concretizar perante a singularidade da ocasião.”
Mas a verdade é que o TdC viria mesmo a recusar o visto prévio, em fevereiro. A câmara recorreu, com um escritório de advogados que não a SRS. E em julho, a autarquia contratou a SRS, por ajuste direto, por 74.999,25 euros, para “aquisição de serviços jurídicos (...) na área do direito administrativo, em especial da contratação pública”, prevendo uma alínea a “obtenção dos vistos do TdC”. A Câmara do Porto esclareceu que o contrato em causa não era relativo ao Matadouro, mas a um outro processo.
João Paulo Batalha, presidente da associação cívica Transparência e Integridade, começa por criticar a própria intervenção do PR: “É uma enorme falha de decoro institucional que configura uma pressão sobre o TdC – especialmente grave porque vinda do homem responsável por escolher a liderança desse tribunal – e reduz o Presidente a lobista de determinado projeto urbanístico, por mais mérito que esse projeto tenha.” Para a seguir questionar a imagem
gerada: “Vermos depois o seu irmão ser contratado para uma assessoria que inclui acompanhar processos pendentes no TdC cuja liderança é nomeada pelo próprio Marcelo Rebelo de Sousa é problemático e levanta um conflito de interesses (este sim, real, porque põe Pedro Rebelo de Sousa a lidar com uma entidade cuja liderança é nomeada pelo seu irmão) que tem de ser sanado, afastando Pedro Rebelo de Sousa e o seu escritório de qualquer tipo de intervenção junto do Tribunal.”
O problema, aponta, está precisamente nas leituras que este tipo de casos permite: “Não quer dizer que o irmão do Presidente não possa em nenhum caso fazer contratos com entidades públicas, mas num caso em que é contratado para, entre outras coisas, lidar com organismos nomeados pelo seu irmão parece-me evidente que deve, sim, não ser contratado e que há, sim, um claro conflito de interesses.” Até porque, acrescenta, “não faltarão advogados conhecedores e experientes em matéria de contratação pública e de processos junto do TdC – a menos que a câmara quisesse, mais do que contratar um jurista, contratar um lobista”. Considera que a questão se põe mesmo que “nunca chegue sequer a suscitar a intervenção direta ou indireta do Presidente. O facto de ele [o irmão] poder ter uma influência presumida junto da Presidência da República contamina a relação que poderá ter com o Tribunal na defesa dos interesses da Câmara do Porto e configura um conflito de interesses”, seja qual for o caso a tratar. Para o presidente da TI, uma situação que “o próprio e a Câmara do Porto (e, na ausência destes, o Presidente) deviam ter evitado”.
A autarquia e a SRS discordam. Questionada sobre se não vê inconveniente em contratar o escritório do irmão, após ter tido um apoio do Presidente, a autarquia respondeu: “Claro que não. [Seria] pressupor que o referido cidadão não poderia ter qualquer atividade profissional, até porque o Senhor PR promulga todas as leis.” A SRS tem uma resposta semelhante: “Se a SRS ficasse impedida de ter contactos com entidades públicas com as quais o PR mantém relações institucionais e políticas, isso significaria que a SRS teria de fechar portas, pois não haverá entidade pública ou mesmo privada que não tenha tido qualquer tipo de relacionamento com o PR, dada a sua forma de empreender o mandato.”
Nuno Garoupa é crítico desta visão
EVITAR CONTRATAR A SRS NÃO FAZ SENTIDO, “NÃO PODERIA TER QUALQUER ATIVIDADE PROFISSIONAL”, DIZ A CÂMARA DO PORTO
em que os contratos com o Estado fazem falta: “Temos sociedades especializadas em direito dos negócios, mas depois os negócios têm de meter o Estado. E esse vai ser sempre o argumento, não podem ser impedidas de ser contratadas pelo Estado, senão estavam na miséria...”
O Presidente hiperpresente
Mas concede num ponto: a forma como Marcelo exerce o mandato propicia estes alinhamentos. “A isto soma-se o estilo pessoal do PR que deveria exercer alguma reserva, como fez o anterior PR sobre os negócios do genro com o Estado, ou como fizeram vários dos visados no governo Costa no familygate do ano passado. Mas isso já é uma questão de estilo e os portugueses parecem apreciar este estilo (pelo menos, fazendo fé nas sondagens).”
Num mundo político pequeno e no qual Marcelo é muito ativo, o PR voltaria em março a receber Rui Moreira, com Fernando Medina, presidente da Câmara de Lisboa. Ambos em protesto com os atrasos do TdC, mesmo após uma alteração à lei que permitia às autarquias ter PPP e lhes resolvia situações pendentes. E se Rui Moreira é cliente do irmão, também Medina tem como parceiro, no Programa Renda Acessível (precisamente o encalhado no TdC), o Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana – outro cliente da SRS.
As colisões, remotas como esta ou diretas como a da Madeira, não perturbam nenhuma das partes. Nem o PR, como se entende das suas respostas (na íntegra nas páginas seguintes), em que considera “absurdo que todo e qualquer membro da sua Família esteja impedido de exercer atividade profissional relacionada com qualquer instituição administrativa pelo mero facto de ser familiar do PR, que não dispõe de qualquer poder executivo sobre essas instituições”. O PR responde também a questões que, contudo, a SÁBADO nem formulou: a revista sempre as colocou do ponto de vista da salvaguarda da imagem política, não sugerindo em momento algum qualquer tipo de articulação entre o PR e o escritório do seu irmão. W