SÁBADO

Denis Goldberg (1933-2020)

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Ativista dos direitos humanos, juntou-se a Nelson Mandela na luta contra o apartheid na África do Sul e passou mais de duas décadas preso. Morreu aos 87 anos

Aconsciênc­ia social e política de Denis Goldberg despertou cedo. Filho de londrinos da classe operária, descendent­es de judeus da Lituânia, que emigraram para a África do Sul, estranhava que, para a sua família, gente informada, que consumia e discutia à mesa as notícias internacio­nais e seguia à risca os ideais comunistas, o apartheid parecesse aceitável, por questões culturais (e, possivelme­nte, para acautelar o pequeno negócio que lá abriu).

Para ele, não havia desculpa. Como contou em numerosas entrevista­s, mergulhado num sistema legalmente racista do qual discordava, os seus heróis aos 12 anos não eram os aventureir­os dos livros, mas sim os soldados que, na Segunda Guerra Mundial, se opuseram aos nazis, dispondo-se a dar as próprias vidas pelos seus ideais: “Creio que foram a minha maior influência, enquanto crescia. Comecei logo a pensar que, se chegasse a minha vez, teria de fazer alguma coisa. Não ia ser conivente com aquela injustiça.”

O rapaz, nascido e criado na Cidade do Cabo, fez-se homem. Estudou Engenharia Civil, conheceu a mulher (Esme Bodenstein, filha de militantes comunistas, com quem casou em 1954, e teve dois filhos, Hilary e David, em 1955 e 1957) e sonhou uma vida pacata a fazer casas.

Contudo, não levou mais de 30 segundos a responder ao repto de Nelson Mandela, quando ele o desafiou a juntar-se ao seu exército ilegal – o Umkhonto we Sizwe, o braço armado do ANC, partido político – para lutar contra o apartheid. “Se sabes construir pontes, também sabes como destruí-las”, ter-lhe-á dito.

E ele nem hesitou, embora já tivesse filhos, “crianças a quem foi muito difícil explicar a decisão” e que cresceram praticamen­te sem pai.

“Podia ter sido rico, sim, mas não me arrependo. Fiz o que acreditei ser necessário e o que era necessário era agir”, confessou, em janeiro deste ano ao jornal alemão DW.

“PODIA TER SIDO RICO, SIM, MAS NÃO ME ARREPENDO. FIZ O QUE ACREDITEI SER NECESSÁRIO”, DISSE

Condenado para a vida

Em 1964, no mais importante julgamento político da História da África do Sul, em Rivonia, foi condenado por traição à pátria (juntamente com Nelson Mandela e outros oito líderes da resistênci­a armada ao regime, sendo ele, com 31 anos, o mais novo) a prisão perpétua, mas nunca temeu a pena de morte: “Éramos homens de um certo calibre, especialme­nte Walter Sisulu foi de uma tão evidente integridad­e e inteligênc­ia no julgamento, que era impossível mandar-nos matar.”

Logo após a sentença, a mãe perguntou-lhe pelo veredicto e ele respondeu: “É para a vida... e a vida é maravilhos­a.” Durante 22 anos, passou 16 a 18 horas diárias sozinho na cela, impedido de falar com os outros detidos da Prisão Central de Pretória – e não na de alta segurança de Robben

Island, para onde foram Mandela e os outros, todos negros. O seu ânimo nunca esmoreceu: na década de 70, chegou a ajudar alguns camaradas (também brancos, entretanto condenados) a evadir-se da prisão. Em 1985, graças à ajuda da filha Hilary (a viver num kibutz em Israel), que organizou uma comissão liderada pelo ativista Herut Lapid (ligado à libertação de prisioneir­os judeus pelo mundo fora) para arquitetar a pressão política para o tirar da prisão (sem que ele soubesse de nada), Goldberg – entretanto com novos diplomas universitá­rios, em Administra­ção Pública, História, Geografia e Ciências da Informação, acumulados em duas décadas de isolamento – foi finalmente libertado, exilando-se em Londres, onde continuou a trabalhar com o ANC e em causas humanitári­as. Enviuvou em 2000 e casou novamente dois anos depois com a jornalista Edelgard Nkobi, voltando nessa altura à África do Sul, quando a filha morreu, aos 47 anos, com um AVC. “É tempo de regressar, preciso de ar puro”, disse.

Sempre honrado, lembrado pelo espírito de sacrifício, Goldberg chegou a oferecer-se para, no terrível julgamento, se autoincrim­inar de um ato terrorista para salvar Mandela, à época apologista do ódio implacável aos brancos opressores – uma lição que viria a inspirar a “nação arco-íris”, fundada na paz e na igualdade entre todos que norteou a política sul-africana do pós-apartheid, a partir de 1994. Embora desiludido com o estado do país e a corrupção no ANC, não tornou a sair da África do Sul, onde morreu, vítima de cancro no pulmão, na sua casa em Hout Bay, na quarta-feira, 29. W

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LUIS GRAÑENA

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