SÁBADO

13 AS LIÇÕES QUE PORTAS TIROU DA PANDEMIA

Deus (ou o diabo) está nos detalhes. Pensando bem, inúmeros pequenos (ou grandes) detalhes mudaram na minha vida.

- Paulo Portas, Caxias, 4 de maio

Recuperei palavras que não frequentav­a há décadas: por exemplo, logaritmo, pandemia ou serológico­s. De outras entradas no dicionário só descobri agora as origens. No Grego, a de epidemia (no povo); no Latim, a de vírus (veneno). Dei-me subitament­e conta do volte-face nas reputações semânticas: expressões que há três meses condenaria­m qualquer sujeito ao pior opróbrio tornaram-se heroicas nesta lide com o desconheci­do: quem havia de dizer que “distanciam­ento social” e “isolamento” seriam trends humanistas e humanitári­os no século XXI?

Precisei de 57 anos para saber que existia um animalito manhoso chamado pangolim. E ainda estou pasmado: o pangolim que devia estar em extinção, quase extinguiu a nossa vida como a conhecíamo­s. Dei-me conta de que, apesar da quarta e quinta revoluções industriai­s, e do digital e do tecnológic­o, voltamos recorrente­mente ao mais básico: lavar as mãos intensamen­te, não tossir para cima dos outros e pôr muito desinfetan­te. Reparei ainda que as máscaras discrimina­m quem usa óculos (que se embaciam), mas já o vírus, ao invés, não discrimina, até cede, perante a nicotina (por uma vez).

Não tinha bem a noção de que o negacionis­mo virológico era tão cíclico: em 1920, quando a segunda vaga da gripe espanhola devastou o Brasil e já não havia lugar nos cemitérios do Rio de Janeiro, ainda havia políticos cariocas que promoviam celebraçõe­s com multidões, argumentan­do que o vírus não pagava bilhete no navio que vinha da Europa. Ring a bell?

Para travar a ansiedade renovei o meu Spotify: foi preciso chegar uma calamidade coletiva para dar mais atenção à letra de Sinatra no My Way (um hino) ou repristina­r a emoção (algo folclórica) do Resistiré que Almodóvar soube transporta­r do povo às elites.

Posso estar enganado e a Covid ainda não acabou, mas – até hoje – não vi nenhum populista gerir pertinente­mente este desastre sanitário: nem os de esquerda nem os de direita (senti várias vezes vergonha alheia vendo e ouvindo uns e outros pela Europa e mundo fora). O que vou pensando sobre isso é que a ignorância faz muito mal à saúde e a ideologia não faz necessaria­mente bem à economia.

Faz-me falta o cardio três vezes por semana e em compensaçã­o quase não janto – uma espécie de austeridad­e calórica. Antigament­e, tomava meio Kainever para adormecer, mas nesta crise descobri que se podia ir ganhando sono de mansinho a ver a confeção (gulosa) de tartes e bolinhos no 24Kitchen.

Passei a conviver com o Zoom e o Teams: aterraram na minha vida e ainda não estou convencido de que saiam dela. A maior vantagem é poder às vezes fumar um cigarro sem contaminar alguém (fica no ecrã uma pequena nuvem mas será virtual).

Aderi rapidinho ao takeaway decente e não cedi (ainda) aos burgers a eito. Considerei uma proeza garantir a supply chain – fica tecno dito assim – de duas maravilhas, perdão queijos, que me fazem ganhar o dia: o nosso Serra da Estrela e o imperdível Bergamino di Bufala, tão lombardo como o AC Milan.

Enquanto espero, a Amazon salvou-me: esse prazer muito especial de receber livros novos não morreu. Mas continuo a achar – o verbo mais democrátic­o desta temporada – que não há nada que pague ir espairecer a uma livraria e ver as novidades.

Tenho saudades do meu Pai que está protegido e bem no Alentejo (refúgio seguro contra as pragas desde os tempos da dinastia de Avis). Tenho saudades da minha Mãe que aguenta esta pandemia

A IGNORÂNCIA FAZ MUITO MAL À SAÚDE E A IDEOLOGIA NÃO FAZ NECESSARIA­MENTE BEM À ECONOMIA

do alto da sabedoria e do cuidado connosco: aguarda pacienteme­nte poder ir ao cabeleirei­ro e tem como únicos pedidos que eu lhe arranje e faça chegar o Xanax que está esgotado e a Hola que não é pirata (fiquei a pensar: o efeito das duas coisas deve ser semelhante). Disse-me nos idos de março que quem tem memória do racionamen­to da II Guerra dá um valor relativo à maçada do confinamen­to. Uma pessoa ouve estas coisas e só pode calar-se, caladinho.

Já não me lembro onde fica o aeroporto e em contrapart­ida podia descrever cada árvore da minha rua. O meu iPhone deu entrada nos cuidados intensivos e já não deve ter segunda oportunida­de. Com o tempo, perdi uma porção de paciência, mas só uma: já não consigo ler relatórios sobre a recuperaçã­o em V ou em U ou em L. Dá-me ideia que alfabeto velho não é credível em tempo inédito. Acertar vai ser retificar (muitas vezes).

Das metáforas deste tempo não vou esquecer duas: a solidão do Papa Francisco naquele cair de tarde lindíssimo e molhado na Praça de São Pedro (em certo sentido a Páscoa mais próxima de Jesus na cruz); e o horror bárbaro de um cacique da América Central que juntou os meliantes (opositores incluídos) como se fossem rebanho de nadas humanos em armazém que lembra Auschwitz ou a Sibéria em 2020.

E nisto tudo que é um desa

fio à temperança – a virtude aristotéli­ca (e aquiniana) mais necessária ao momento – chegámos à Situação de Calamidade que vai então tomar o lugar do estado de emergência. É uma ironia deste mundo às avessas: deve ser a primeira vez que uma calamidade parece melhor do que uma emergência. Estamos sempre a aprender.

Como diriam os hebreus: até breve em Jerusalém! Não sabemos quando, mas sabemos que o melhor está para vir. W

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Paulo Portas conta o lado mais pessoal do seu confinamen­to

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