SÁBADO

MESMO A TEMPO DE SALVAR O MUNDO COM HUMOR EINFELD

Jerry Seinfeld: 23 Hours to Kill estreou na Netflix e parecia que estava a adivinhar que íamos ter tempo de sobra. O especial de comédia foi gravado no Beacon Theatre e é o regresso do mestre. Falando nisso, por onde é que ele andou?

- Por Ângela Marques

se juntavam para gravar, os Beatles das sitcoms (Jerry Seinfeld, Michael Richards, Jason Alexander e Julia Louis-Dreyfus) faziam uma rodinha, cumpriment­avam-se e seguiam para mais um bingo. Naquele dia, no entanto, quando se preparavam para gravar o 176º – e último – episódio da série que tinha deliciado o mundo entre 1989 e 1998, Jerry pediu um minuto.

Usou-o assim: “Sabem, até

Este é o segundo especial de comédia de Jerry Seinfeld na Netflix. O primeiro chama-se Jerry Before Seinfeld e é de 2017

ao fim das nossas vidas, sempre que alguém se lembrar de um de nós vai lembrar-se de todos os outros, dos quatro, juntos. E eu não consigo lembrar-me de outras três pessoas a quem quisesse estar associado até ao final dos meus dias.” Conseguimo­s imaginar a comoção, não?

Foi no sofá de Oprah que, em 2004, os quatro atores se reuniram pela primeira vez depois desse último episódio, que foi para o ar a 14 de maio de 1998, e contaram esta história. Não falaram, contudo, do mais surreal: mais de 76 milhões de pessoas viram o grande final (que polarizou o mundo, com muitos fãs a acharem que Seinfeld e o coautor da série, Larry Da

Q vid, só podiam estar a gozar com eles – mais tarde, numa participaç­ão na série Curb Your Enthusiasm, ambos fariam piadas com isso).

Os anúncios televisivo­s desse dia custaram 1 milhão de dólares, atingindo assim o patamar a que só o Super Bowl chegara e a TV Land, um canal de televisão do cabo americano, interrompe­u a emissão, exibindo um cartaz que dizia: “Somos fãs de televisão, por isso… estaremos a ver o último episódio de Seinfeld. Voltamos depois das 22h.” Eles eram os reis e a rainha da televisão e da comédia.

Mas o fim tinha chegado (em 2021 a série chega, completa, à Netflix). Cada um seguiria o seu caminho. Em 2002, quando surgiu no Dave Letterman Show para fazer um número de comédia, Jerry começou precisamen­te com uma piada sobre isso. “A série acabou em 1998. Vocês perguntam-me: Jerry, que andaste a fazer? E eu só posso responder… nada.” Seinfeld mentia.

Mentia tanto que o próprio documentár­io, que estava a ser gravado naquele momento, o desmentia. Jerry Seinfeld – Comedian, que estreou em sala em 2002 e está disponível na Netflix, acompanha Seinfeld no seu regresso aos palcos, depois do sucesso na televisão. E será porventura neste documentár­io que o sarcástico humorista, tão capaz de um olhar analítico e cínico sobre o comportame­nto humano, mais revela as suas fragilidad­es.

A história é conhecida: em 1998, no final de Seinfeld, Jerry fez um espetáculo (também disponível na Netflix, apesar de ter sido produzido pela HBO) chamado I’m Telling You For The Last Time em que usou todo o material que tinha pela última vez. O objetivo era claro: despedir-se de repertório antigo, obrigando-se assim a trabalhar num novo.

Só que, como o próprio partilha em Jerry Seinfeld – Comedian, o comediante, particular­mente aquele que faz stand-up, precisa de anos a trabalhar no mesmo material para que este seja infalível.

Em 2019, Seinfeld tinha 65 milhões de dólares de fortuna acumulada, o que o atirou para o topo da lista dos comediante­s mais bem pagos da Forbes

Seinfeld tinha passado os nove anos anteriores a fazer televisão. “E eu não posso voltar a fazer sete noites por semana. A minha vida mudou”, confessa nesse documentár­io.

Jerry era agora um homem casado (desde 1999, com Jessica, com quem tem três filhos: Sascha, Julian e Shepherd) e sentia que entre

a fama que tinha colecionad­o e os carros que começava a colecionar, o trabalho, para valer a pena, tinha de lhe dar prazer – e refazer-se como artista de palco seria um desafio.

Foi o que fez, no entanto: em 2001 voltou a fazer o circuito dos pequenos clubes de comédia (incluindo aquele em que se estreou, em 1976, o Comic Strip) e quando em 2002 o documentár­io supracitad­o estreou ele já fazia grandes palcos.

Em 2007, viu História de Uma Abelha, que escreveu, estrear com estrondo nos cinemas – Seinfeld era a abelha que comandava uma história que contava com as interpreta­ções de um punhado de estrelas: Renée Zellweger e Matthew Broderick, mais os comediante­s Chris Rock e Larry King e ainda Sting e

Oprah estavam por lá.

Depois, Jerry voltou aos ecrãs como ele próprio. Em 2012 estreou Comedians in Cars Getting Coffee, que começou por ser exibido na plataforma digital Crackle, até ser comprado pela Netflix, em 2017. No programa, que já vai na 11ª temporada, Jerry convida comediante­s (e um ou outro não comediante como Barack Obama, que esteve no programa em 2015) a tomar café e a dar um passeio num dos seus carros preferidos.

Agora, Jerry volta aos especiais de comédia. Por culpa de todos os espetáculo­s que estão disponívei­s na Netflix, parece que o conhecemos. Conseguimo­s vê-lo: um rapazola, nos anos 60, em Massapequa, uma cidade de 21 mil habitantes do estado de Nova Iorque, amado, ignorado e negligenci­ado na mesma medida pelos pais, Betty e Cal.

Entretido a comer alguma coisa composta em 100% por açúcar ou a voar de uma árvore abaixo, diz que sempre gostou dessa liberdade de fazer asneiras. E que aquilo que

Apesar de algo desapareci­do, Seinfeld nunca esteve desligado – prova disso foi o contrato que assinou com a Netflix e que resultou neste especial

o fez virar-se para o humor foi ver o pai, um vendedor, conseguir convencer os clientes a gastarem dinheiro fazendo-os rir. Mais: diz que aquilo que o fez crescer nessa arte foi ter, desde miúdo, alguém a dizer-lhe o que não devia fazer – que era exatamente o que lhe apetecia fazer a partir desse momento.

Mas será exatamente assim? Enquanto, nos últimos anos, muitos comediante­s dedicaram os seus espetáculo­s a temas fraturante­s, escolhendo ser uma voz política aqui e ali, e optando por caminhos que não raras vezes os afastaram de determinad­os públicos (o que tem tanto de risco quanto de despudor), Seinfeld conseguiu quase sempre fugir a esse tipo de compromiss­o.

No início do ano explicou até numa entrevista ao New York Times que, de facto, havia temas que não aflorava muito nos seus textos. Em entrevista­s, porém, será sempre mais difícil fugir a eles – e foi assim que acabou por ter de comentar não só o #Metoo, mas também os casos de Bill Cosby (condenado por crimes de violação) e de Roseanne Barr (que teve o seu programa cancelado depois de tweets racistas). Num caso e noutro, Seinfeld foi cauteloso, condenando quer as ações quer as palavras. Só que, para Seinfeld, o humor resolve tudo. Até uma ou outra polémica em que se veja, como aquela que surgiu quando, no contexto do movimento #Metoo, uma jornalista lhe perguntou o que estava errado com a indústria e ele respondeu: “It’s not the industry, honey” (“Não é a indústria, querida.”). Como é que Seinfeld resolveu o comentário “Acabou de me chamar ‘querida’” da jornalista? Com piadas. W

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Os quatro atores de Seinfeld tornaram-se amigos durante as filmagens – que duraram nove anos
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Nos anos 90, a imagem de Seinfeld tornou-se uma das mais rentáveis do mundo
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Em 2019, Jerry Seinfeld foi convidado a fazer o primeiro lançamento entre os New York Mets e os Philadelph­ia Phillies no Citi Field em Nova Iorque
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Entre os 71 prémios e as 185 nomeações que a série Seinfeld colecionou contam-se, por exemplo, três Globos de Ouro
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Aos 65 anos, Jerry Seinfeld é casado com Jessica e tem três filhos: Sascha, Julian e Shepherd

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