SÁBADO

Coreia do Norte O catalão Cao de Benós defende o regime no Ocidente

Quem quer fazer negócios com a Coreia do Norte, tem de falar com ele. É espanhol, vive em Tarragona e devido à Covid-19 arrisca-se a ficar um sem-abrigo.

- Por Carlos Torres

Foi a grande dúvida: porque é que Kim Jong-un, de 36 anos, desaparece­u três semanas? Foi infetado com o coronavíru­s? Foi operado ao coração? “Isso são tudo falsos rumores.” Quem o afirma é Alejandro Cao de Benós, que é desde 2002 uma espécie de embaixador não oficial da Coreia do Norte para o resto do mundo. O catalão, de 45 anos, garantiu à Bloomberg que o líder asiático está bem e até mostrou, na semana passada, uma foto de Kim junto de aviões militares “no dia em que houve a suposta cirurgia de emergência”. Mas não esclareceu se Kim esteve em retiro no complexo de luxo da cidade de Wonsan, como especulara­m fontes americanas e da Coreia do Sul.

Sempre que surgem alegadas fake news sobre o regime coreano, Cao de Benós pode intervir. Mas essa não é a sua principal função. Como delegado especial do Comité de Relações Culturais com o Exterior, ligado ao Ministério dos Negócios Estrangeir­os, promove o país no Ocidente e agiliza negócios – nem todos, claro. Há pouco foi contactado por um empresário do Havai que queria abrir um McDonald’s em Pyongyang. E também por espanhóis da Igreja de Jesus Cristo

FALA POUCO COREANO, MAS DIZ QUE NO PAÍS JÁ HOUVE PESSOAS QUE LHE FIZERAM BRINDES NOS RESTAURANT­ES

dos Santos dos Últimos Dias. Às duas respondeu que não: não há negócios de privados no país nem religiões que não sejam as existentes antes da fundação da República da Coreia, em 1948.

Para mediar os negócios entre países capitalist­as e o regime socialista – alvo de sanções da comunidade internacio­nal –, “é preciso ser persistent­e e estar imune à frustração”, revela. Os que têm maior taxa de sucesso são os que envolvem os recursos naturais da Coreia do Norte, como minérios. Mas também têxteis, indústria pesada, construção naval, pesquisa farmacêuti­ca e eletrónica. “A Coreia tem desenvolvi­do muitas aplicações para Android e iOS, e de baixo custo. E também exportamos muito para todos os tipos de desenhos animados e videojogos”, confessou à Bloomberg.

O interesse de Cao de Benós pela Coreia do Norte começou há mais de 30 anos, conforme contou ao El País em 2017. “Com 12 anos lia o jornal El Caso, interessav­a-me por ET, demónios, coisas raras. E comecei a ter curiosidad­e também pela Coreia, não tanto pelo mistério, mas pela política.” Com 16 anos foi trabalhar para uma bomba de gasolina para arranjar dinheiro para viajar até ao país. “Descobri uma sociedade pura, baseada na igualdade, e com pessoas muito agradáveis. E quis ajudar a Coreia.”

Com 18 anos, Cao de Benós, que vive em Tarragona, criou a Associação de Amizade com a Coreia (KFA). Conseguiu que muitos colegas da sua Universida­de (Navarra) se tornassem membros. Não por causa das afinidades com o socialismo, mas porque ele lhes oferecia Coca-Cola e sessões de karaoke nos encontros. Atualmente, garante, tem 16 mil membros, de 120 países. E é recorrente organizar viagens à Coreia com os associados.

Em 2000, com 25 anos, quando trabalhava numa empresa de tecnologia informátic­a, teve o aval do ministro dos Negócios Estrangeir­os coreano para criar o primeiro site oficial da Coreia do Norte no exterior – e em inglês. Quando isso se soube, diz que foi pressionad­o para deixar o site e como recusou acabou despedido.

Numa viagem que fez a Pyongyang com 20 membros da KFA, em 2001, ofereceu-se para ir viver para lá e in

tegrar o exército. “Disseram-me que já tinham muitos soldados e decidi sacrificar-me na selva capitalist­a e lutar à minha maneira: a promover a ideologia e a cultura do país.”

Depois de anos a servir como propagandi­sta do regime no Ocidente,

Kim Jong-il (pai do atual líder) tornou-o delegado especial do Comité (em 2002). “Sou o único não coreano que trabalha para o governo. O primeiro e o único na história”, confessa, explicando que tinha uma relação privilegia­da com Kim Jong-il, que o tornou cidadão honorário: “Encontrei-me com ele várias vezes e deu-me muitas prendas.” Não é tão próximo do filho, Kim Jong-un, mas já esteve “perto dele em diferentes eventos do Estado” e já lhe apertou a mão.

Quase um sem-abrigo

Apesar do seu trabalho para o regime, garante que não tem salário – recebe comissões quando as empresas que o contactam chegam a acordo com o Governo e investem na Coreia. E ganha dinheiro com as conferênci­as que dá em vários países. Em 2017, no El Independie­nte, apontava-se para 40 por ano. Em 2019 organizou, em Pyongyang, a primeira conferênci­a de criptomoed­a na Coreia – levou

PARA ELE, A COREIA É UM PARAÍSO: “NÃO HÁ FOME NEM SE VÊ PROSTITUIÇ­ÃO, LADRÕES OU VICIADOS EM DROGAS”

lá oito especialis­tas estrangeir­os.

Com a epidemia de Covid-19, não tem tido conferênci­as nem negócios, e está em dificuldad­es. “Se não conseguir ter dinheiro para a renda [600 euros] até ao fim do mês [de maio], o banco expulsa-me e torno-me sem-abrigo”, admitiu à Bloomberg.

Cao de Benós não viaja para a Coreia desde 2016: em Espanha tiraram-lhe o passaporte e tem de se apresentar em tribunal depois de numa busca em casa lhe terem encontrado duas armas para as quais não tinha licença – está a ser investigad­o por suspeita de ligação a uma rede de tráfico de armas, embora tenha garantido ao El País que apenas as tinha para defesa pessoal e que só é perseguido por defender a Coreia. Um paraíso onde ele sonha morar, porque é “um país onde o Estado trata das pessoas como uma família”, dando-lhes casa, emprego, educação e saúde, e no qual “não há fome nem se vê prostituiç­ão, ladrões ou viciados em drogas”. W

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 ??  ?? Cao de Benós com um pin de Kim Jong-il, em setembro de 2019. Durante 10 meses teve um restaurant­e coreano em Tarragona (fechou em 2017)
Cao de Benós com um pin de Kim Jong-il, em setembro de 2019. Durante 10 meses teve um restaurant­e coreano em Tarragona (fechou em 2017)

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