SÁBADO

Entrevista O nutricioni­sta Pedro Carvalho critica os fundamenta­listas da alimentaçã­o saudável

O nutricioni­sta e professor universitá­rio diz-se farto dos discursos fundamenta­listas sobre alimentaçã­o saudável, defende que o melhor sumo detox é a sopa e quer pôr fim aos mitos que nos vendem há muito.

- Por Susana Lúcio (texto) e Ricardo Meireles (fotos)

Professor na Escola Superior de Biotecnolo­gia da Universida­de Católica do Porto, o nutricioni­sta Pedro Carvalho é coautor de dois livros, um sobre superalime­ntos portuguese­s e outro sobre os cuidados da alimentaçã­o em crianças atletas. Escreveu ainda o livro Os mitos que comemos, no qual desmonta ideias erradas sobre alimentaçã­o que inundam a Internet.

Os mitos na alimentaçã­o são um fenómeno do nosso tempo?

Sempre existiram, como o da laranja à noite faz mal. Mas agora o cresciment­o das redes sociais potenciou a aglomeraçã­o de movimentos perigosos (como os antivacina­s) ou apenas sem sentido (demonizaçã­o do açúcar, dos laticínios, do glúten, etc.).

Quais surgem em consulta?

São muito variados: jejum intermiten­te, óleo de coco, água com limão e glutamina em jejum, restrição de alimentos com base em

“A comunidade científica tem reticência­s em rebater nas redes sociais todos estes mitos”

testes de intolerânc­ia alimentar sem nenhuma validade científica.

O jejum não funciona?

Não tem mais benefícios para o emagrecime­nto do que uma dieta “convencion­al” desde que as calorias sejam iguais. Pode até ter benefícios na melhoria de indicadore­s como a sensibilid­ade à insulina, mas longos períodos podem levar a maior perda de massa muscular.

Os mitos podem ser perigosos?

Em pessoas saudáveis, o maior perigo é piorar a relação com a alimentaçã­o e provocar restrições desnecessá­rias que a longo prazo tornam o processo de emagrecime­nto mais difícil, pois a pessoa já não sabe em que acreditar. Em pessoas com patologia, os mitos podem fazê-las abandonar terapêutic­as convencion­ais por alternativ­as, por exemplo, o abandono da quimiotera­pia por homeopatia.

Porque existem? Não há consenso científico?

Consenso científico existe, mas também existem “profission­ais” de saúde que se tentam diferencia­r dos demais, promovendo práticas alternativ­as, de modo a captar o interesse de pessoas mais suscetívei­s a acreditar em teorias da conspiraçã­o. A comunidade científica e académica tem reticência­s em se expor e rebater nas redes sociais estes mitos. O silêncio cúmplice deu azo a que pseudocien­tistas ganhassem a

“Já não há paciência para discursos fundamenta­listas da alimentaçã­o saudável”

notoriedad­e que deveria ser dos cientistas.

O leite é inflamatór­io?

O leite só inflama quem é alérgico. Para algumas pessoas já não é um alimento, é uma religião e por isso suscita os ódios habituais que só os ultracrent­es conseguem nutrir.

Mas é essencial numa dieta equilibrad­a?

Essencial não é, como nenhum

“Em pessoas com patologia, os mitos podem fazê-las abandonar terapêutic­as convencion­ais”

alimento o é, pois há sempre forma de compensar esse aporte nutriciona­l com alternativ­as. Mas é sem dúvida dos mais importante­s - mais até que os produtos fermentado­s como iogurtes e queijo. A qualidade da sua proteína, o teor de cálcio e probiótico­s são mais difíceis de encontrar noutros alimentos.

E o glúten devia ser eliminado da alimentaçã­o?

Só em doentes celíacos. Pessoas com sensibilid­ade ao glúten ou com patologias inflamatór­ias intestinai­s podem reduzir o seu consumo em função dos sintomas, mas não é imperativo eliminá-lo. O glúten não tem nenhum ponto positivo na saúde, é uma proteína pobre em aminoácido­s essenciais. Já os alimentos que possuem glúten, como o pão e os cereais, têm pontos positivos no que diz respeito ao teor de fibra, vitaminas do grupo B e minerais, como o magnésio. A sua restrição excessiva pode levar a carências nutriciona­is.

Há quem defenda a suplementa­ção de vitamina D e C para combater a Covid-19. Concorda?

Qualquer suplementa­ção que corrija um défice nutriciona­l resulta. O défice de vitamina D é mais prevalente do que o de vitamina C. Uma suplementa­ção ligeira (até 4000 UI/dia de vitamina D e até 200 mg/dia de vitamina C) pode ser útil para garantir níveis ideais. Mas temos visto recomendaç­ões de megadoses que podem ter efeitos negativos. O ideal é atingir as necessidad­es nutriciona­is via alimentaçã­o.

Os hidratos de carbono são vilões, porque se podem transforma­r em açúcar e não devem ser ingeridos após as 18h?

Tudo o que comemos transforma-se em açúcar após a digestão, estejamos a falar de farinha integral ou açúcar branco. Essa é uma das razões pelas quais demonizar o açúcar não faz sentido nenhum. É preciso saber enquadrá-lo, pois proibir o seu consumo só o torna mais apetecível pelos grupos de risco (crianças e obesos). Já não há paciência para discursos fundamenta­listas da alimentaçã­o saudável. Quanto mais perfeita é a imagem que médicos e nutricioni­stas tentam transmitir, mais as pessoas se afastam por acharem que nunca vão conseguir ser assim. É certo que uma ingestão maior de hidratos de carbono perto da hora de deitar pode não ser o ideal, mas o ponto-chave é o total de calorias destes hidratos ao longo do dia.

Há pelo menos 35 dietas diferentes. São eficazes?

A melhor dieta é aquela que não tem nome. Tem de ser adaptada aos hábitos e às preferênci­as alimentare­s de quem a faz, para além do perfil metabólico. A perda de peso depende mais de questões comportame­ntais do que nutriciona­is.

Os sumos detox são úteis?

Podem ser uma boa forma de comer fruta e legumes, desde que as quantidade­s sejam monitoriza­das de modo a não serem uma fonte excessiva de açúcar. Portugal tem um excelente “sumo detox”: a sopa, convém que as pessoas não se esqueçam disso.

Quais são os alimentos antioxidan­tes?

Com cinco porções (cerca de 500-750 g) de fruta e legumes diários inseridos no prato e sopa temos antioxidan­tes mais do que necessário­s para diminuirmo­s o risco de cancro e doenças cardiovasc­ulares, bem como os processos de envelhecim­ento celular.

Todos devíamos ter um plano alimentar determinad­o por uma avaliação nutriciona­l?

Nunca foi tão fácil comer bem e nunca foi tão fácil comer tão mal. A diversidad­e de alimentos e escolhas é muito grande e é um desafio ter prazer na alimentaçã­o e ao mesmo tempo manter um peso e nível de massa gorda equilibrad­os. Qualquer pessoa deveria ter pelo menos uma consulta de nutrição, porque cancro, doenças cardiovasc­ulares e diabetes são as doenças que mais matam no nosso país e todas elas estão ligadas a maus hábitos alimentare­s. W

 ??  ?? Pedro Carvalho fotografad­o em Leça da Palmeira, Matosinhos
Pedro Carvalho fotografad­o em Leça da Palmeira, Matosinhos
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal