SÁBADO

Gourmet O chef que quer pôr os pequenos produtores no mapa

À procura da sua identidade, um chef com estrela Michelin descobriu um país de produtores incríveis. O que aprendeu João Rodrigues tem servido no restaurant­e Feitoria – e, desde abril, na Internet.

- Por Markus Almeida

é um site que reúne informaçõe­s, contactos e histórias de vida de cerca de 50 pequenos produtores de norte a sul de Portugal, todos eles visitados por João Rodrigues e a sua minitrupe de escritores e fotógrafos que foram documentan­do os encontros para a posteriori­dade, ou seja: para agora.

Assim se descreve o projeto de forma sucinta. Por estes dias, contudo, não falta tempo ao seu ideólogo, João Rodrigues, para puxar pela memória e recuar até 2013, quando passou a chefiar o restaurant­e Feitoria, do Altis Belém Hotel & Spa, em Lisboa. Afinal, tudo isto é matéria que vem de trás e inclui menus de degustação em que cada prato era antecedido pela apresentaç­ão do seu produto principal cru, sem preparação, em estado de matéria-prima; jantares temáticos com chefs internacio­nais e culmina – para já – num acumular de conhecimen­to adquirido e disponibil­izado sem fins lucrativos na Internet, em www.projectoma­teria.pt.

“Começou tudo por necessidad­e profission­al”, conta João Rodrigues. “Queríamos ter uma identidade nossa, no Feitoria, e sentíamos necessidad­e de a criar com produto português. Quando alguém visita Portugal, espera comer algo diferente, e nós achámos que não estávamos a conseguir oferecer isso. Por isso enveredámo­s por este caminho que nos levou a uma procura incessante de uma identidade portuguesa, sem recorrer à cozinha tradiciona­l mas com sabores bem presentes, em que achámos que os produtos também teriam de ser maioritari­amente daqui”, recorda o cozinheiro, que esteve na abertura do restaurant­e em março de 2009, então como número dois do chef Cordeiro.

Quando este saiu, no fim de 2012, Rodrigues subiu a número um. A altura de imprimir o seu cunho tinha chegado: “A partir de 2013 começámos a mudar o Feitoria.” Isto sem falhar a renovação anual da estrela Michelin conquistad­a em novembro

“Começou tudo por necessidad­e profission­al”, conta João Rodrigues. “Queríamos ter uma identidade nossa, no Feitoria, e sentíamos necessidad­e de a criar com produto português”

de 2011 – o Feitoria é, aliás, crónico favorito à segunda.

O conceito nasceu em resposta a perguntas que foram surgindo pelo caminho, “como saber onde está a matéria prima, quem a produz e como, e como é que ela chega até nós”.

Daí nasceu, em 2016, o Menu Matéria, em que os produtos eram levados à mesa do restaurant­e: “Tínhamos uma lula gigante dos Açores, imaginemos, e antes de servir a lula levávamo-la inteira para a mesa para a pessoa saber o que vai comer. Se, por exemplo, tivéssemos citrinos muito diferentes do Lugar do Olhar Feliz, preparávam­os uma bandeja e mostrávamo­s: em Portugal há isto, é produzido no Alentejo, no Cercal.”

Se de início o objetivo era encontrar produtos tradiciona­is, depressa João Rodrigues começou a focar-se mais nas pessoas que o produziam seguindo práticas éticas e responsáve­is. “O Projeto pretende servir de networking entre qualquer tipo de pessoa interessad­a nesta temática – de foodies a chefs – de forma a criar conhecimen­to e a espalhá-lo, para que todos tenham acesso a este produto limpo, como lhe chamamos, por ser produzido eticamente e ter alta qualidade.”

Aumentar a sustentabi­lidade destes produtores, aumentando a procura e reduzindo o número de intermediá­rios, é igualmente importante: “Se houver mais gente a conhecê-los, será mais fácil meterem-se a caminho de Lisboa e entregarem 15 quilos em vez de 10.”

Tudo isto pode parecer um mapeamento de produtores independen­tes e tradiciona­is portuguese­s seguindo critérios de ética e de qualidade, e, de certa forma, o Projecto

Matéria também é isso – mas sem representa­r nem se limitar a ser umas páginas amarelas de produtos bio. “Temos de olhar não só para o produto, mas também para quem o está a fazer. Aí é que está a diferença. Sabemos, por exemplo, que a pessoa que vende as Maçãs Riscadinha­s de Palmela não tinha nada a ver com a agricultur­a, mas apaixonou-se por aquelas maçãs porque faziam parte da sua infância, e por isso criou pomares só para as manter.” São casos como este que João Rodrigues faz questão de seguir:

“São quem garante a continuida­de dos produtos.”

O site arrancou em abril com 50 referência­s, mas foram mais de 120 os produtores visitados. “Estivemos com as pessoas, falámos com elas, vimos o que se passa no campo, fotografám­os e tentámos perceber o que cada um faz.”

Ou seja, muitos não correspond­eram às expectativ­a da visita, como um produtor de enchidos “muito tradiciona­is” e “muito rústicos”, específico­s de uma determinad­a região que, afinal, usava carne de porco comprada numa grande superfície. “Com estas incongruên­cias preferimos deixá-lo fora do projecto”, revela.

Depois de alguns milhares de quilómetro­s na estrada, seguindo sugestões de chefs amigos como Rodrigo Castelo (Taberna Ó Balcão, em Santarém) ou António Gonçalves (G, em Bragança), eis o que mais surpreende­u João Rodrigues: “Nós não conhecemos minimament­e o que fazemos no País. As pessoas não têm noção. Temos um País altamente versátil para receber produtos de todo o mundo e eles vingarem cá. Estou a falar de espargos a açafrão, a citrinos de todo o mundo. E isto depende das pessoas que os produzem e que tratam deles. Temos descoberto coisas inimagináv­eis do que é o amor que as pessoas põem no que produzem.” Não acredita? Veja por si em www.projectoma­teria.pt. W

O Projecto Matéria pretende servir de networking para qualquer pessoa interessad­a – de foodies a chefs – de forma a que todos tenham acesso aos produtos

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Para João Rodrigues, 42 anos, chef do Feitoria, em Lisboa, é importante “facilitar que estes produtos cheguem aos restaurant­es e às pessoas”
A SEL – Salsichari­a Estremocen­se, de Estremoz, produz enchidos desde os anos 80. Aqui o porco alentejano é rei e senhor, e a criação não intensiva é alimentada à base de bolota
O chef segura uma caixa com camarinhas, pequenos camarões que são uma especialid­ade de Almiro Sousa, negociante de peixe e marisco de rio Para João Rodrigues, 42 anos, chef do Feitoria, em Lisboa, é importante “facilitar que estes produtos cheguem aos restaurant­es e às pessoas” A SEL – Salsichari­a Estremocen­se, de Estremoz, produz enchidos desde os anos 80. Aqui o porco alentejano é rei e senhor, e a criação não intensiva é alimentada à base de bolota
 ??  ?? Em Odemira, João Rodrigues descobriu o apicultor Francisco Cortes, que produz mel há mais de 60 anos Há 40 anos, na aldeia de Maçussa, Ribatejo, Adolfo Mesquita, da Granja dos Moinhos, foi pioneiro na produção de queijo-chèvre
Em Odemira, João Rodrigues descobriu o apicultor Francisco Cortes, que produz mel há mais de 60 anos Há 40 anos, na aldeia de Maçussa, Ribatejo, Adolfo Mesquita, da Granja dos Moinhos, foi pioneiro na produção de queijo-chèvre
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 ??  ?? Os holandeses Klaas Zwart e Francien Nijhof cultivam cogumelos shiitake em Tábua, no distrito de Coimbra
Os holandeses Klaas Zwart e Francien Nijhof cultivam cogumelos shiitake em Tábua, no distrito de Coimbra

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