Cinema Entrevista à realizadora do filme dinamarquês Rainha de Copas
Inquietante e realista, Rainha de Copas foca um tema tabu, raramente filmado. Falámos com a realizadora desta obra dinamarquesa que estreia em Portugal a 7 de maio, nos videoclubes das televisões e plataformas VOD.
uma casa de sonho, dessas que invejamos sobretudo agora, em tempos de isolamento social, com salamandra, bela arquitetura, espaços amplos e, aos seus pés, verdura a perder de vista. Tem também um par de gémeas saudáveis, a quem lê a história de Alice no País das Maravilhas ao deitar, um marido médico, Peter, que lhe é fiel e devoto, próximo do perfeito, um emprego estimulante, defendendo judicialmente jovens vítimas de violência.
Porém, como todos os seres humanos, Anne – interpretada por Trine Dyrholm, atriz com quem a realizadora já tinha trabalhado e que foi a escolha natural para o papel – tem uma “zona cinzenta”. Sente o corpo a envelhecer e a vida a escapar-lhe, uma espécie de solidão intrínseca, uma insatisfação própria de gente inteligente e um inconfessável desejo de poder, motor e alimento do seu destino trágico.
Esta dinamarquesa de meia idade, em boa forma, é uma parente, não tão longínqua quanto se poderia supor, de heroínas do teatro clássico, especialmente Fedra: tal como a protagonista da peça do romano Séneca, seduz o enteado (o adolescente interpretado por Gustav Lindh, escolhido por casting e confirmado pela “química com a protagonista”, que sempre viveu com a mãe na Suécia e, devido a alguns deslizes, vai passar uma temporada a casa do pai, marido de Anne – a casa dela, pois).
May el-Toukhy, realizadora e coargumentista da obra, admite à SÁBADO essa referência: “Foi uma das inspirações. Tenho um passado ligado ao teatro e tento seme
“A solidão atira-os um para o outro”, diz a realizadora, que quis fazer da protagonista “uma personagem o mais complexa possível, que fosse o reflexo de uma pessoa real”
pre encontrar um lado mitológico na história.”
Porém, a grande motivação por trás de Rainha de Copas, grande sucesso na Escandinávia, multipremiado em festivais e escolhido em 2019 como candidato dinamarquês ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, que lá pelo meio, por momentos, parece uma história de amor, foi outra, como reconhece a autora: “Sou fascinada por segredos familiares porque creio que a maioria das famílias tem, pelo menos, um. Quis criar um filme sobre o nascimento de um segredo familiar e investigar as componentes necessárias para que ele perdure, se torne um marco. Além disso, quis explorar as estruturas de poder no âmbito da família, que é um microcosmos, e construir um filme sobre a responsabilidade que vem desse poder e os passos que o legitimam.”
A ocasião faz a pedófila, poderia ser o resumo deste filme íntimo e intimista, mas nunca monótono, que deixa no ar um indício, nunca esclarecido, de que ela própria terá sido vítima de um abuso semelhante – quando o enteado lhe pergunta com quem perdeu a virgindade e ela se escusa a detalhes. Seja como for, será esta questão realista? Há assim tantas predadoras sexuais?
May el-Toukhy diz que não é comum e que o jovem surgir como a vítima é um tabu na nossa sociedade, “porque altera o que histórica e culturalmente pensamos que uma mulher consegue fazer e o que um rapaz pode aceitar”.
Está certa, contudo, de que “existem mais casos destes do que sabemos, porque há uma grande dose de vergonha e secretismo em torno da questão, especialmente entre os homens que vivem algo assim”. O contrário, homens adultos a seduzir raparigas, “é muito mais falado”.
Abordar um tabu – e corajosamente, sem medo de ferir suscetibilidades, incluindo nudez total e um momento breve de sexo explícito – é o grande trunfo de Rainha de Copas, mas a sua credibilidade vem da forma como a protagonista é apresentada, munindo-a de nuances que vão da crise de meia idade ao desejo de poder e a um egocentrismo sem remorso, misturado com um ideal de vida perfeita, no centro do qual reside uma “solidão existencial” que ela reconhece também no enteado, como refere May el-Toukhy: “A solidão atira-os um para o outro. A minha ambição era criar uma personagem o mais complexa possível, que fosse o reflexo de uma pessoa real.” Conseguiu-o com distinção. W