Música Conversa com Três Tristes Tigres, que têm novo disco de originais
ENTREVISTA
O novo disco dos Três Tristes Tigres, Mínima Luz, profetiza apocalipses bonitos, cheios de purpurinas e ironia, onde o mundo, virado do avesso, é capaz de “transformar petróleo em ranho”. Pelo meio, através de letras de Regina Guimarães, Luca Argel e de poemas traduzidos e adaptados de William Blake e Langston Hughes, vai evocando mil formas divinas, com a plasticidade da voz de Ana Deus e os sons eletrónicos da guitarra de Alexandre Soares.
Passaram 22 anos desde o lançamento do vosso último álbum, Comum. Porquê agora o regresso aos originais? ANA DEUS (AD): Foi o acaso. Nós estávamos a trabalhar juntos no Osso Vaidoso quando tivemos o convite para fazer um espetáculo em 2017 no Porto Best Of [no Rivoli] a partir do Guia Espiritual (1996). Deu muito trabalho fazer o espetáculo, mas também nos deu muito prazer e isso fez-nos querer continuar, mas com temas novos.
Como foi o processo de trabalho?
AD: Começámos a pensar nisto há cerca de dois anos, tempo que coincidiu com a gestação dos discos antigos dos Tigres.
ALEXANDRE SOARES (AS): A Ana começou a trabalhar nos textos e eu no som. A nossa ideia era voltar à eletrónica e usar coisas que tenho desenvolvido quando faço música para dança, teatro ou cinema. Nestes dois anos andei muito à volta de sintetizadores modelares, com as minhas guitarras às vezes mais ásperas, outras menos.
AD: E eu fui pedindo textos à Regina [Guimarães], outros ao Luca [Argel], coisas que tivessem a ver com pensamentos positivos, com boas profecias, ao contrário das profecias da desgraça. Queria explorar ideias de cura, de comunhão. Depois aconteceram desvios nos textos, como era de esperar – ou seria uma coisa muito limitada – e fui adaptando as
letras ao som que estava a ouvir.
AS: Íamos desenvolvendo trabalho às vezes mais juntos, outras cada um na sua área, frequentemente por improviso. Eu gosto muito de usar os primeiros improvisos e andar à volta deles, trabalhar esses primeiros momentos.
De onde vem esse interesse pelas tais profecias bonitas?
AD: Acho fascinante que alguém, a ler ou a ouvir, se sinta convocado a corresponder a uma ideia. Alguém escreve uma coisa e outros, no futuro, ou no presente, ou lá quando for, ouvem aquilo e sentem, de alguma forma, que aquelas palavras lhes dizem respeito. Isto é o meu fascínio pelas profecias, mas o que fizemos no álbum é outra coisa. É mais uma ideia que passa por cima da realidade e atravessa os tempos, que vai do passado ao futuro e mistura tudo, põe tudo no mesmo tempo de sintonia. Está tudo criado e, ao mesmo tempo, tudo por criar.
É curioso que essa vontade de passar por cima da realidade coincida com esta pandemia, que põe tudo em causa. Pensaram adiar o lançamento?
AD: Começámos por adiar um bocadinho o lançamento, por alguma contenção e respeito perante a situação, mas depois achámos que, de alguma forma, as pessoas estavam mais atentas em casa, a consumir outro tipo de coisas. O disco era já uma fuga aos temas repetidos, que são digeridos em todas as plataformas e neste momento também tem esse sentido, de atravessar por cima desta situação que é terrível. Até
porque isto vai passar e o nosso desejo é que o disco saia deste tempo e continue.
O título, Mínima Luz, vem da vontade de tirar o ruído das nossas vidas?
AD: É um desejo de lucidez também. Estamos numa era em que vivemos vários géneros de realidades. Por vezes parece que há um retorno à imbecilidade, deitando para trás tudo o que é do campo da razoabilidade, dos factos científicos. Existe um absurdo total, que está muito ligado a alguns líderes e às coisas que eles dizem e em que uma pessoa nem acredita, como aquela história de injetar desinfetante! É tudo tão absurdo que o disco é também um desejo de uma luz, uma mínima luz de razoabilidade por cima disto, contra o absurdo. Por outro lado, Mínima Luz é um título aberto à interpretação, como um pequeno poema.
Depois deste disco, imaginam-se a tocar novamente os êxitos dos anos 90 que fizeram, como O Mundo a Meus
Pés ou Zap Canal? Como é que convivem com esse passado?
AS: Nós já passámos muitos anos em que não os tocámos ao vivo.
AD: Mas não temos problemas em relação ao passado.
AS: Tocamos o que nos apetece, mexemos nas versões. Quando não gostamos, deixamos de tocar.
E o que podemos esperar para os próximos tempos?
AS: Para já não vai haver concertos, mas dentro em pouco vamos começar a trabalhar os dois, juntos, e depois, lentamente, com os outros elementos. Se calhar até começam a surgir novas músicas.
AD: É uma boa altura para compor, mas calma [risos]. Vamos andando. W
Começámos por adiar um bocadinho o lançamento, por respeito perante a situação, mas depois achámos que as pessoas estavam mais atentas, a consumir outro tipo de coisas