Ângela Marques
Seguir aqueles diálogos estava a ser mais difícil do que aprender alemão em Braille. Seguindo os mandamentos velosianos, tínhamos passado o dia a palmilhar o Porto, da Ribeira até à Foz. A meio da tarde tínhamos comprado bilhetes para o teatro – éramos turistas com mundo; “riquinhos”, como diriam os que jogavam em casa. E agora ali estávamos, cansados da boa vida, mas felizes que nem duas maracas.
Sem exagero, aquela era uma peça obrigatória: um clássico numa sala clássica. Minutos antes de entrarmos, sentia-se um certo pudor nos gestos, uma certa formalidade no trato e aquela teatralidade que os teatros têm e devem ter. Estava feliz, embora, como sempre, desconfiada de que “aproximadamente duas horas e meia” de espetáculo fosse mais do que o meu corpo e a minha mente conseguissem gerir sem pedirem o divórcio um ao outro.
O tempo parou como deve parar sempre que um artista está em palco – só que, no caso, o tempo parou e depois arrastou-se, arrastando-me também. No intervalo, senti o mesmo que senti no último casamento a que fui (que começou às 12h30 e foi decorado a roxo), quando acabámos de almoçar: vontade de deixar cair uma lágrima por saber que ainda faltava outra metade.
Culpei a peça – porque era
NO INTERVALO, SENTI O QUE SENTI NO ÚLTIMO CASAMENTO A QUE FUI: VONTADE DE DEIXAR CAIR UMA LÁGRIMA POR AINDA FALTAR METADE
lenta, porque parecia retirada de um museu, porque não aproveitava o virtuosismo dos atores –, culpei as cadeiras, culpei tudo menos o cansaço, sabendo perfeitamente que tinha sido o cansaço a pesar-me nos olhos, a tirar-me a capacidade de concentração e até a disponibilidade para ver aquela peça de forma a que pudesse criticá-la, se fosse caso disso, mas sem birras de sono.
A peça era importante, eu é que adormeci e no fim ainda a culpei. Naquele dia fiz o que já todos fizemos um dia: desprezei a árvore, ajudando a dar cabo da floresta. Hoje, que não sei quando voltarei a poder entrar num teatro cheio, penso naquela peça e no que disse dela: que me tinha dado sono. Felizmente ainda sei que mau não é haver peças que nos dão sono, é a falta de cultura poder deixar-nos adormecidos. W