JOÃO PEREIRA COUTINHO
ESTAVA EU POSTO EM SOSSEGO
quando uma amiga, indignada, me perguntou: “Viste o Guedes de Carvalho na SIC?” Não tinha visto, confesso, porque aproveitei o último fim-de-semana de estado de emergência para fazer uma viagem há muito programada: entre o quarto e o sótão da casa, com paragem obrigatória na cozinha para jantar. É o preço que pago por não ser sindicalizado.
Mas o tom era tão alarmante que cheguei a temer que o nosso Rodrigo tivesse contaminado alguém em estúdio, tossindo ferozmente para cima de um convidado. Regressei imediatamente à sala.
Falso alarme. Pelos vistos, o jornalista limitou-se a entrevistar a ministra da Saúde, o que também não deixa de ser uma imprudência. Em Portugal, ninguém entrevista ninguém. A função de muitos profissionais é simplesmente dar as deixas para que o político de ocasião possa fazer o seu comício.
Aliás, nem sei por que motivo existem jornalistas. Era mais fácil e barato que ministros ou secretários de Estado se entrevistassem a si próprios. Se fizessem muita questão, podiam sempre usar um boneco de ventríloquo. Exagero?
Não creio. Do uso das máscaras aos abusos do 1º de Maio, sem esquecer a calamidade dos lares, os doentes oncológicos que foram enxotados do SNS ou os números duvidosos da DGS, contam-se pelos dedos de uma mão os jornalistas que importunaram o poder com essas minudências.
Fatalmente, e como jornalista que é, Rodrigo Guedes de Carvalho perdeu algum tempo a fazer o seu trabalho. E a ministra, estupefacta com a evidência de que não estava na presença de um espantalho, lá confirmou o que se suspeitava: a CGTP está acima do português comum; a recomendação para o uso de máscaras obedeceu aos mais rigorosos critérios do “vamos indo e vamos vendo”; e o que vem a seguir, com o regresso à normalidade, será o que Deus quiser.
Eu, se fosse a direcção da SIC, corrigia esta desfeita. E convidava novamente a dra. Marta Temido para que ela pudesse entrevistar a ministra da Saúde sobre o estado do tempo ou as tendências mais marcantes para o próximo Outono/Inverno. Os portugueses agradeciam.
CHAMEM-ME O QUE QUISEREM.
Mas, em matéria de abusos sexuais, sempre tive esta tara: todas as vítimas devem ser ouvidas; todas as acusações devem ser investigadas; mas a presunção de inocência deve ser intocável, até prova em contrário. Bizarro?
Será. Que o diga Joe Biden, que em 2018 tinha uma opinião distinta. Quando uma mulher aparece em público para acusar alguém de conduta sexual imprópria, “a essência do que ela diz” (sic) é necessariamente verdadeira, afirmava ele. No fundo, Biden defendia que uma mulher nunca mente, o que não deixa de ser espantoso: convivo há quase 44 anos com ambos os sexos e posso garantir, por experiência própria, que todos mentem.
Mas percebo o nosso Joe: como lembra o Wall Street Journal, a “essência”, em 2018, eram as acusações de Blasey Ford contra Brett Kavanaugh, o juiz que Donald Trump nomeou para o Supremo Tribunal.
Pois bem: uma antiga funcionária do Senado apareceu agora para acusar Biden de abusos sexuais em 1993. Para meu espanto, Biden não vai em “essências”; e tratou de negar qualquer crime em entrevista televisiva.
Está no seu direito. E, repito, a sua presunção de inocência mantém-se. Mas esta história, que ainda vai no adro e promete manchar o presumível candidato democrata à Casa Branca, revela bem como, para certas personagens, as vítimas só são vítimas quando servem propósitos políticos. Não conheço maior insulto ao sofrimento de muitas delas.
ASSIM NINGUÉM SE ENTENDE:
quando Donald Trump aconselha os americanos a injectarem lixívia para derrotar o bicharoco, estamos na presença do maior criminoso da história desde Átila, o Huno.
Mas se o mesmo Átila telefona ao Presidente Marcelo para celebrar com ele o nosso sucesso na luta contra o mesmo bicharoco, não há patriota que resista.
Calma, gente: em termos de eficácia, o nosso sucesso, com mais de mil mortos, está ao mesmo nível da lixívia. Quem come o primeiro não deve rir de quem bebe a segunda. W