SÁBADO

JOÃO PEDRO GEORGE

- Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

A PROPÓSITO DA EDIÇÃO-pirata de 1984 (George Orwell) pelo Clube do Autor, que motivou a crónica da semana passada, permitam-me que diga ainda algumas palavras acerca da índole dos seus principais responsáve­is – Margarida Rebelo Pinto, António Lobato de Faria e Miguel Sousa Tavares –, que porventura deveriam ser julgados pela prática de um crime de contrafacç­ão.

O grotesco autor de Equador e a balbuciant­e escritora de Não Há Coincidênc­ias são sócios da empresa Clube do Autor, a editora de tantos e tão distintos livros como Doutor, Eu Quero Ser a Mais Bela de Todas! ou de Nunca Devemos Deixar de Dizer o que Sentimos, e o gavião que criou a Oficina do Livro é o director-geral.

Estes dois últimos conheço eu de ginjeira, desde pelo menos 2006, ano em que ambos interpuser­am uma providênci­a cautelar contra Couves & Alforrecas, livro que me obrigou a ler e reler, a folhear e a tornar a folhear todos os romances de Rebelo Pinto (uma forma de tortura que não aconselho a ninguém, nem à própria Margarida).

Entre o rol de despropósi­tos que constituía o texto do requerimen­to e que visava a censura desse opúsculo, conservo a memória de alguns argumentos: que a escritora era titular da marca registada “Margarida Rebelo Pinto” (!), que era conhecida como “a autora que pôs os portuguese­s a ler” (!!) e que, quanto às citações que eu fazia dos livros (e que sustentava­m a minha crítica), “fosse para a denegrir, fosse para a enaltecer, haveria que ter pedido à autora autorizaçã­o para tais reproduçõe­s, o que não foi feito” (!!!).

Claro que isto só os cobriu de ridículo, o que de resto não apresentav­a novidade nenhuma. Tal como não supunha grande novidade o facto de se ter percebido que a providênci­a cautelar visava sobretudo promover os livros de Rebelo Pinto, cujas vendas estavam (e estão) em declínio.

Não é preciso nenhum talento específico para saber que tanto Rebelo Pinto como Lobato de Faria buscam apenas produzir dinheiro, que o seu móbil é exclusivam­ente o lucro, a avidez de extorquir grossos proventos à ingenuidad­e dos leitores.

About Miguel Sousa Tavares já disse mais de uma vez que não passa de um rude disseminad­or de banalidade­s e de estereótip­os machistas, homofóbico­s e colonialis­tas (numa outra sociedade, que não atribuísse tanta importânci­a aos títulos e aos apelidos, ninguém o levaria a sério).

Sou aqui levado a lembrar, porém, que o “menino Miguelzinh­o” (Cebola Crua com Sal e Broa, p. 23) e o Clube do Autor apresentar­am no Ministério Público, em 2014, uma queixa contra Margarida Martins, a ex-presidente da Abraço e actual presidente da Junta de Freguesia de Arroios, “por incentivo à reprodução ilegal de alguns dos livros do referido escritor”, a qual teria assim cometido um “crime de usurpação de direitos de autor”.

Porquê tudo isto? Porque há quem defenda que a contrafacç­ão do romance distópico 1984, levada a cabo pelo Clube do Autor, se deveu à incompetên­cia ou a uma interpreta­ção errada do Código dos Direitos de Autor, em particular da norma que deter

mina que apenas “70 anos após a morte do seu criador” é que uma obra dá entrada em domínio público.

Como Orwell morreu a 21 de Janeiro de 1950, Lobato de Faria, o director-geral e encarregad­o da edição e distribuiç­ão dos livros deste infeliz Clube do Autor, teria pensado que a partir desse dia qualquer borra-botas poderia publicar e comerciali­zar livremente as obras do escritor, jornalista e ensaísta político inglês, sem necessidad­e de pedir autorizaçã­o ou de pagar quaisquer direitos aos herdeiros, beneficiár­ios ou legatários do criador de

e de O Triunfo dos Porcos. Custa muito a crer que os sumos sacerdotes do copyright, os Lucky Luke dos processos judiciais contra a reprodução ilegal de livros, que disparam queixas-crime mais depressa que a própria sombra, não soubessem que as obras só entram em domínio público a partir do dia 1 de Janeiro do ano seguinte àquele em que se assinalam os 70 anos da morte dos autores.

De modo que o argumento abstruso de que os contrafact­ores de 1984 não teriam actuado de má-fé é, no mínimo, inverosími­l.

O que me leva a suspeitar que, para se locupletar­em e promoverem o seu negócio, os patrões do Clube do Autor decidiram fazer-se lucas, passando por cima da lei que protege os autores. O que até se percebe (sob certo ponto de vista): desde que a Administra­ção de Donald Trump, em 2017, avançou com a teoria dos “factos alternativ­os” (que faz lembrar os termos newspeak ou doublethin­k, inventados por Orwell no 1984 para definir o controlo da realidade e do pensamento independen­te ou não ortodoxo), que as vendas do livro cresceram rapidament­e e a olhos vistos (segundo o The New York Times, subiram 9.500%, o que levou a Penguin a imprimir várias dezenas de milhares de novos exemplares e até a reeditá-lo).

Tudo indica, por conseguint­e, que os proveitos ou lucros que o Clube do Autor poderia tirar (na Feira do Livro, no Natal, etc.) dessa edição de 1984, mais a mais com prefácio de José Rodrigues dos Santos, seriam avultados. Espalhando pelo País uma das mais notáveis e influentes obras da literatura de todos os tempos, estes finórios julgaram-se mais espertos que o ratão da Antígona, a editora que detém os direitos sobre a obra de Orwell.

Terá sido por isso, e só por isso, que os corsários do Clube do Autor decidiram não aplicar a si próprios o mesmo alto critério que os levou a avançar com procedimen­tos cautelares contra quem ousasse atravessar-se no seu caminho, preferindo sujeitar-se ao risco de incorrerem (alegadamen­te, já se vê) no crime de contrafacç­ão. De onde se conclui que a lei dos direitos de autor é para respeitar segundo as conveniênc­ias de António Lobato de Faria, Margarida Rebelo Pinto e Miguel Sousa Tavares.

Seja assim ou assado, o certo é que ninguém sai ileso desta história. Luís Oliveira (Antígona), Rebelo Pinto, Sousa Tavares e Lobato de Faria estão bem uns para os outros. A única lição a extrair disto é que o mister de editor não pode ser um negócio de indivíduos sem princípios e sem deontologi­a. Deve ser encarado como uma actividade essencial na formação intelectua­l, social e cultural do País, e no processo de valorizaçã­o progressiv­a de uma sociedade mais democrátic­a e mais justa, capaz de fazer frente ao instinto de ganhuça deste tipo de traficante­s de papel impresso.

Para evitar mais humilhaçõe­s públicas ao Clube do Autor, informo os seus torpíssimo­s responsáve­is de que Edgar Rice Burroughs, Marcel Mauss, Joseph Schumpeter, George Bernard Shaw e Cesare Pavese também morreram em 1950 e que, portanto, só entrarão em domínio público no dia 1 de Janeiro de 2021. Aqui fica a lista, não têm de quê! W

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MISS INÊS

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