NUNO ROGEIRO
Ganhámos espaço e credibilidade. Diz-se. Mas convém pôr as coisas em perspetiva. E não embandeirar em arco. Nem ser hipnotizado por aparências. Pouco antes de cair, Marcello Caetano era aplaudido pelas massas, num jogo de futebol.
Evitou-se agora, sobretudo, uma catástrofe anunciada.
O SNS, tão maltratado por pais e padrastos, resistiu.
Não houve necessidade de pôr os militares a fazer cordões sanitários em torno de cidades com mortos pelas ruas, ou bases aéreas transformadas em hospitais de campanha.
Os enfermeiros e os médicos, os polícias e os soldados, os bombeiros e os agentes da proteção civil, agora aplaudidos, mas antes agredidos e exorcizados, desvalorizados, mal pagos ou partidarizados, mostraram a necessidade de aposta nacional nas redes de saúde, segurança social e socorro.
A declaração do estado de emergência, tão mal compreendida, mesmo em setores ditos “cultivados”, foi essencial. Descobriu-se ali, pela primeira vez na história constitucional desta república, um poder normativo inesperado: o do Presidente da República.
Foi com base no seu decreto “aberto” (não era, no entanto, uma “carta-branca”) que o Executivo pôde orientar a ação nas áreas de isolamento, prevenção, tratamento atempado e ordem pública.
A base de tudo foi essa suspensão preventiva de certos direitos, liberdades e garantias, mas sobretudo a qualidade do povo português.
Nos diários do escritor alemão Ernst Jünger, ferido e combatente das duas guerras mundiais do século XX, descreve-se, numa visita a Portugal,
uma cena curiosa. O autor vê um homem pobre, carregado, a vender na rua. Está curvado, carrancudo, arrasta-se. Tem dois discursos. Em voz baixa, pragueja e maldiz a sua sorte. Sonoramente, anuncia a mercadoria.
Os portugueses foram, uma vez mais, esse homem. Cerraram os dentes e mantiveram-se compostos, ordeiros, corajosos, em público. Guardaram as desgraças para si, para a família e para os amigos.
Foram, como de costume, de brandos modos e demasiado obedientes? Depende de quem observa. As revoltas e as revoluções não se medem pelo últiComo mo encontro social que tivemos, nem pela medição a olho. Quando se alia ao descontentamento, à alienação e à frustração um “projeto”, Portugal costuma saltar. Às vezes como um leão, que estava enjaulado há demasiado tempo, e se tinha esquecido de que era rei.
Mas os planos políticos não são para hoje, se bem que estejam em curso. Há ainda demasiadas incógnitas.
Na infraestrutura emocional, o problema maior será agora o da confiança.
O mundo pode acabar assim. Como o apagar de um fósforo. Aprenderam-se muitas coisas sobre resistência, resiliência, espírito familiar e comunitário, apagaram-se muitas guerras, descobriram-se outras, mas as unidades básicas da sociedade redescobriram-se. A nação é a soma algébrica destas tribos, unidas pela língua e cultura(s), pela tradição, pelos sonhos de futuro, por aquela coisa que alguns chamaram “unidade de destino” ou “mapa de vida”.
Estes núcleos podem dar uma nova energia ao todo. Mas é preciso voltar a aprender gestos coletivos de convivência, reutilizar espaços e serviços públicos, ter garantias de saúde no trabalho, equilibrar o rigor higiénico, a vigilância, a pedagogia e a tranquilidade.
Depois, antes, durante, vem o pão. Nem só dele vive o homem, mas nunca como agora se tornou importante fazer contas, raciocinar poupanças, racionalizar gastos, decidir entre o útil e o supérfluo. Muitos tornaram-se economistas sem o saber.
E a verdade é que quase todos viverão com menos, pelo menos durante algum tempo. Ora numa sociedade pauperizada, com muitas empresas e famílias frágeis ou falidas, o papel do Estado será mais crucial do que nunca. Cabe-lhe a responsabilidade de impedir a imprudência, o excesso, o caos e a revolta.
Esta, como dissemos atrás, pode sempre chegar. Basta que haja um erro fundamental. E um projeto que o detete e aproveite.
Projeto de patriota, ou projeto de demagogo.