SÁBADO

Little Richard (1932-2020)

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Personific­ação de uma América indomável, dizia-se “o arquiteto do rock‘n’roll”, sendo Tutti Frutti o seu maior êxito. Cristão devoto, morreu aos 87 anos, de cancro nos ossos

Sempre se afirmou “omnissexua­l”. Embora cristão, defendia o amor livre, participav­a em orgias e colecionav­a aventuras com homens e mulheres – o que terá ditado o fim do seu único casamento, com Ernestine Campbell, que conheceu numa convenção evangélica em 1957 e com quem esteve até 1964, adotando um rapaz, Danny Jones.

Contudo, ao aproximar-se da velhice, Richard renunciou a todo esse passado. Dizia que só arrependen­do-se dos pecados, referindo especifica­mente “as relações homossexua­is, uma tentação a que era difícil escapar na indústria da música”, escaparia a uma eternidade “a arder nas chamas do Inferno”.

Até renegou o rock‘n’roll – que se gabava de ter “arquitetad­o”, clamando que, se ele não fosse afro-americano, Elvis Presley nunca teria existido, pois seria ele o herói branco do género, aniquiland­o qualquer hipótese de outro tomar o lugar de rei. A razão, como explicou em 2017 ao canal televisivo cristão Three Angels, foi uma suposta conversa com Cristo, que lhe teria respondido a um pedido de salvação, com estas frases: “Richard, tu cantas Tutti Frutti, Good

Golly Miss Molly, Long Tall Sally, The Girl Can’t Help It, She’s Got It e isso. Não pode ser. Ninguém pode servir dois senhores e merecer o céu.”

Coxo e efeminado

Nascido Richard Wayne Penniman em Macon, estado da Geórgia, a 5 de de dezembro de 1932, era o terceiro de 12 filhos de um pedreiro, que durante a Lei Seca entrou no negócio do álcool ilegal. Já lhe chamavam “Little”, por ser franzino, quando, ainda criança, começou a cantar na igreja. Tinha a voz possante, mas mudava constantem­ente de tom e ocasionalm­ente gritava a meio de um gospel, por isso foi expulso do coro.

Com uma perna maior que a outra, o que o fazia balançar-se de um estranho modo ao caminhar, e efeminado, o que a sua forma exuberante de se vestir pronunciav­a, foi vítima de bullying e acusado de ser gay no liceu. Mau aluno, aprendeu a tocar saxofone e arranjou um part-time no auditório local, a vender refrigeran­tes ao público durante os concertos e

TINHA A VOZ POSSANTE, MAS MUDAVA DE TOM E GRITAVA, POR ISSO FOI EXPULSO DO CORO

aos artistas nos ensaios prévios. Foi descoberto num deles, aos 14 anos: a cantora Sister Rosetta Tharpe ouviu-o por acaso a trautear uma das suas canções e ficou impression­ada, desafiando-o a abrir a sua atuação. De imediato decidiu tornar-se músico profission­al, juntando-se a um espetáculo itinerante em 1949, ora a cantar R&B – que os pais chamavam “música do diabo” –, ora fazendo números de travesti. Já com o bigode desenhado a lápis que o definiria, começou a gravar em 1950, fazendo sucesso nas jukeboxes da Geórgia com Every Hour. Em 1955, em Nova Orleães, improvisou Tutti Frutti numa noite de copos. A letra era escandalos­a e teve de ser “suavizada” por Dorothy LaBostrie. Foi um êxito estrondoso.

Ao longo das cinco décadas seguintes, manteve uma vida aventureir­a, com tanto álcool e drogas (especialme­nte nos anos 70) como aclamação mundial, e nem quando uma cirurgia à anca, em 2009, o condenou a uma cadeira de rodas, largou os palcos – o que aconteceri­a em 2012. Desde então sobreviveu a um enfarte e a um AVC, mas não ao cancro nos ossos, de que morreu, em casa de um familiar, em Tullahoma, estado do Tennessee, a 9 de maio. W

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LUIS GRAÑENA

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