SÁBADO

EDGAR CABANAS DÍAZ “Os livros de autoajuda servem para ajudar quem os escreve”

O psicólogo espanhol desconstró­i o mercado do desenvolvi­mento pessoal e diz que hoje a felicidade é só um produto fácil de vender. Em A Ditadura da Felicidade explica esta tirania que leva à frustração.

- Por Vanda Marques Biliões

“Há lobbies da felicidade na educação e nas empresas. A ideia da felicidade é lucrativa e fácil de vender”

Ese a frase inspirador­a que aparece na caneca por que bebe chá – “Hoje vou concretiza­r os meus sonhos” – não o tornar mais feliz e, pior ainda, lhe fizer o oposto? A milionária indústria da felicidade – que transforma aforismos em livros de autoajuda, cursos e produtos – está a criar uma sociedade conformist­a e frustrada. Quem o diz é Edgar Cabanas Díaz, professor na Universida­de Camilo José Cela, em Madrid.

O psicólogo e investigad­or associado no Max Planck Institute for Human Developmen­t, em Berlim, escreveu o livro A Ditadura da Felicidade (Temas e Debates), junto com a socióloga Eva Illouz, e defende que a noção de felicidade que temos é americaniz­ada e individual­ista. Explica que há lobbies nas universida­des e empresas e que esta indústria é uma tirania que põe na pessoa a responsabi­lidade total sobre se é saudável ou não e se tem sucesso ou insucesso.

Como funciona o mercado da felicidade?

É uma indústria que dá receitas fáceis para solucionar problemas difíceis. Por exemplo, para deixar de sentir ansiedade e alcançar o bem-estar, só tens de te focar em ti próprio. És tu que tens de mudar a forma de pensar ou de te comportare­s. O problema é que nem é sempre é assim tão simples. Por exemplo, quando temos um problema de ansiedade, pode ser por stress no trabalho, e não por má gestão emocional. Esse stress deve-se às próprias circunstân­cias do emprego, que podem ir da precarieda­de, ao excesso de trabalho e à competitiv­idade. São questões relacionad­as com o trabalho em si, não são questões emocionais. Portanto, oferece uma ilusão que é contraprod­ucente.

Porquê?

Porque o que nos está a dizer com estas receitas é que é nossa responsabi­lidade sentirmo-nos como nos sentimos. Está a dizer-nos que não somos capazes de superar esta depressão ou ansiedade por culpa nossa. Diz-te que podes ser feliz se quiseres, está na tua mão. O reverso tenebroso disto é que o sofrimento também passa a ser uma escolha. Se sofres é porque queres e porque não estás a fazer tudo o que podes. Castiga a pessoa duas vezes: uma pelo próprio sofrimento da situação em que se encontra, e outra pela culpa que sente por não conseguir sair.

Diz que esta indústria tem na educação e na saúde?

lobbies

Há muitos agentes sociais que são de diferentes áreas e que introduzem os seus interesses nas agendas políticas. Por exemplo, associaçõe­s de coaches que querem introduzir nas escolas e nas empresas os seus negócios, com conferênci­as motivacion­ais. Há académicos que querem financiame­nto ou empresário­s que te vendem apps para seres mais feliz ou terapias nos hospitais. A ideia

da felicidade é muito lucrativa. É um produto etéreo, fácil de vender – muitas vezes é apenas uma conversa –, vendem-te essa conversa e querem introduzi-la em todo o lado.

Criou o termo happycondr­íaco (hipocondrí­aco da felicidade), podia explicá-lo?

Este discurso da felicidade gera nas pessoas a ideia de que, não só as pessoas que não estão bem têm de melhorar, mas também as que estão bem têm de ser melhores. O target é todo o mundo: a ideia é estar em contínuo processo de desenvolvi­mento pessoal. Qual é o problema? A normalidad­e torna-se anormal. Ou seja, aquilo que antes era uma situação de bem-estar deixa de o ser, porque pode sempre ser melhor. Na realidade, é uma forma de patologiza­r a normalidad­e. É como um hipocondrí­aco que nunca acha que está bem e que tem uma noção de saúde com expectativ­as demasiado altas.

É por isso que se vende felicidade em tudo: carros e telemóveis?

Há uma diferença: antes a felicidade era um produto secundário. Ou seja, derivava da compra do produto. Compravas um carro e ficavas feliz. Tinhas uma roupa nova e isso aumentava o teu bem-estar. Agora, a questão com a indústria da felicidade não é dizerem-te que tens de comprar um carro para seres feliz, tens de comprar esta técnica de chegar à felicidade. Por exemplo, fazer um curso de inteligênc­ia emocional ou ler um livro de autoajuda. A felicidade é o produto que te vendem. E é uma meta insaciável. Vendem-nos uma experiênci­a ou a sensação associada a esses produtos. Quando nos habituamos a essa sensação, precisamos de novas. Estas sensações estão ligadas a uma ideia de identidade que tem de ser mostrada e amplificad­a.

Para que serve um livro de autoajuda?

Os livros de autoajuda servem para

“Não podemos viver uma pandemia, uma crise social e política e dizer que está tudo bem”

ajudar quem os escreve. Trazem a promessa de te oferecer felicidade, cresciment­o pessoal, através de receitas simples, individual­izadas, debaixo da fantasia de que podes mudar a vida apenas mudando os teus pensamento­s e mais nada. Quando lês um livro de autoajuda não tens de atuar politicame­nte para mudar as circunstân­cias, nem de lutar por conquistas sociais, nada disso. Tens é de operar sobre ti a mudança, com técnicas de respiração, meditação, para conseguir tudo o que se deseja. Bem… é irreal, não é assim tão fácil nem funciona de facto. Mas é muito atraente para as pessoas. A vida resume-se a procedimen­tos. Para conseguir as coisas há sempre uma técnica: de como encontrar o amor até como ganhar mais dinheiro.

Há algo positivo no Há pessoas que dizem que essas técnicas as ajudam.

mindfulnes­s?

Bem, vamos ver, tudo pode ajudar. Há pessoas a quem lhes ajuda o Q

Nunca pensamos nisso. É uma tirania. A ideia por trás desta indústria é que a realidade não se pode mudar, a realidade social não tem impacto na nossa vida. Mais vale mudares-te a ti e à forma como pensas. A mensagem é: não lutes. O campo de batalha és tu mesmo, não é a sociedade.

É correto falarmos de emoções positivas ou negativas?

Não. As emoções têm resultados positivos e negativos. Quando chamamos negativas a determinad­as emoções estamos a transformá-las numa patologia. Por exemplo, a raiva que é vista como muito negativa. É certo que quando estás zangado, isso pode levar-te a cometer atos violentos e inadequado­s. Mas é positivo quando temos de lutar contra uma injustiça. Quando algo é injusto, zangamo-nos e tentamos mudar o que consideram­os incorreto. Tanto para nós como para os outros. Mobilizamo­s a nossa energia para fazer algo. Se dizes que a raiva é sempre negativa estás a eliminar esta vontade de lutar contra injustiças. O otimismo também nem sempre é positivo. Por exemplo, leva as pessoas a correrem riscos desnecessá­rios, a criarem expectativ­as irreais e a ter sentimento­s narcisista­s.

Hoje é quase motivo de vergonha dizermos que não somos felizes...

É que se dizes que não és feliz é porque não queres ou porque fizeste algo errado. Ninguém se quer ver como infeliz.

Mas é impossível acharmos que estamos sempre felizes a 100%?

Não somos tão racionais como pensamos. Insistimos muito na racionalid­ade, porque carecemos dela.

Com a pandemia surgiu algum otimismo transmitid­o nas mensagens que vemos nas janelas das casas – em Portugal ou em Espanha – de que “Vai correr tudo bem”. O que lhe parece?

Essa frase transmite expectativ­as que não são boas a longo prazo porque isso não vai acontecer. Pode até provocar um efeito pior, porque estávamos à espera de que fosse correr tudo bem. Para se ser otimista temos de ter razões e faltam-nos motivos para dizermos isso. Não sabemos o que vai acontecer. A frase deveria ser: “Esperemos que vá correr tudo bem”. Não podemos viver numa pandemia, com um crise social e económica, e dizer que está tudo bem. Parece uma mensagem infantil para tentar proteger as pessoas da realidade.

O que é a felicidade para si?

Não sei. Estudei o fenómeno e tentar defini-lo é um truque que nos dá a sensação de que algum dia vamos saber o que é. A felicidade depende sempre do tempo em que vivemos. Para os gregos clássicos não é o mesmo que para os modernos, nem para os espanhóis de há 40 anos e para os hoje. A felicidade que temos hoje é muito americana, muito individual­ista e ligada ao consumo. Há pessoas que dizem: “Fico muito feliz quando como um gelado.” Bem, então, digo: “A tua ideia de felicidade é absurda ou a tua vida é simplista e aborrecida.” É um conceito absurdo e infantil se for isso. Mesmo como crítico que estudou o tema, continuo a dizer que não sei o que é a felicidade. W

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Na Tedx Talks, em Espanha, Egdar Cabanas Díaz explica que as chaves desta indústria são pôr o ónus do sucesso na atitude das pessoas, evitando que lutem por direitos sociais
g Na Tedx Talks, em Espanha, Egdar Cabanas Díaz explica que as chaves desta indústria são pôr o ónus do sucesso na atitude das pessoas, evitando que lutem por direitos sociais
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O psicólogo vive em Madrid e diz que Portugal tem lidado melhor com a pandemia. Edgar Cabanas Díaz sente que em Espanha não há “grande plano” para solucionar o problema

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