Sorria, está infetado
NÃO HÁ POR AÍ
nenhuma alminha que já não tenha passado por aquela coincidência entre as sugestões dadas pelo Facebook e o site que, minutos antes, consultou. Aparentemente, tudo se resume a esse perigoso tipo árabe chamado “algoritmo”, que consegue ir ao encontro das nossas necessidades, gostos, preferências e apetites (até os mais exóticos). O facto de termos o tal “cidadão” a monitorizar as nossas vidas já não inquieta, porque entrou no domínio da normalidade (novamente, este arreliador conceito).
Após o 11 de Setembro de 2001, praticamente todos os Estados democráticos comprimiram as liberdades individuais dos cidadãos a coberto do argumento do terrorismo, santificando, por exemplo, a videovigilância, criando enormes bases de dados pessoais. Entusiasmados e contando com a benevolência dos cidadãos, os poderes legislativos esticaram ao máximo esta intromissão do Estado no quotidiano das pessoas, dando (como em Portugal) poderes absurdos às Finanças ou criando a polícia da alimentação, a ASAE, que rapidamente se transformou numa força talibã contra usos e costumes, sem qualquer tipo de bom senso. Aliás, o seu primeiro diretor, António Nunes, doutorou-se com a tese Terrorismo e Terrorismo Alimentar, um admirável novo mundo de bombas enfiadas em curgetes, presume-se.
Em Portugal, alguns setores ainda fizeram um último esforço para, ao arrepio descarado da Constituição, dar aos serviços de informações a possibilidade de acesso aos metadados das comunicações. Primeiro, inventaram uma comissão administrativa constituída por juízes do Supremo para avaliar os pedidos de acesso das secretas. Numa segunda fase, em vez de uma comissão administrativa, era uma secção especial do Supremo, como se a presença de um juiz bastasse para ultrapassar a letra e o espírito constitucional. Enfim, apesar de tanta ginástica jurídica, o resultado foi óbvio. Como a pressa nunca foi boa conselheira, os projetos esbarraram no Tribunal Constitucional, que nem precisava de juízes licenciados em Direito para os chumbar. Bastava que soubessem ler. Sempre que um fenómeno inusitado atinge a sociedade, surgem de imediato umas almas com um novo elixir, uma coisa maravilhosa, algo extraordinário que nos vai facilitar a vida, tornar a nossa existência mais segura. Com a Covid-19, Paulo Portas e Marques Mendes têm sido os mais acutilantes vendedores da aplicação para telemóveis de rastreamento de infetados. Um tipo vai na rua, se o telemóvel começar a vibrar é porque há um infetado por perto. “Há esperança”, disse Marques Mendes na SIC, reforçando o caráter voluntário da adesão à milagrosa aplicação, não vá a Constituição meter-se pelo caminho, sendo certo que nem para o primeiro-ministro, António Costa, o documento fundamental parece ter muito valor… Se pensarmos bem, esta nova aplicação é apenas um update das braçadeiras que os nazis impuseram aos judeus.
Sempre foi assim: o medo funciona como a melhor plataforma para a compressão da liberdade, já que evita a sempre polémica ação direta do Estado, colocando nos cidadãos a decisão de prescindirem (mais) um pouco da sua liberdade. Não foi por acaso que a Google e a Apple se apressaram a anunciar a criação de uma aplicação semelhante. Para quem vive do negócio dos dados pessoais, os tempos são de investimento.
Há de chegar o dia em que André Ventura vai propor a criação de uma aplicação para detetar ciganos nas redondezas e aparecerão uns tipos nas TVs a defender a bondade da ideia, tudo, obviamente, para defesa do bem comum. Se esse dia chegar, é porque todos nós falhámos. W