SÁBADO

Sorria, está infetado

- Subdiretor Carlos Rodrigues Lima

NÃO HÁ POR AÍ

nenhuma alminha que já não tenha passado por aquela coincidênc­ia entre as sugestões dadas pelo Facebook e o site que, minutos antes, consultou. Aparenteme­nte, tudo se resume a esse perigoso tipo árabe chamado “algoritmo”, que consegue ir ao encontro das nossas necessidad­es, gostos, preferênci­as e apetites (até os mais exóticos). O facto de termos o tal “cidadão” a monitoriza­r as nossas vidas já não inquieta, porque entrou no domínio da normalidad­e (novamente, este arreliador conceito).

Após o 11 de Setembro de 2001, praticamen­te todos os Estados democrátic­os comprimira­m as liberdades individuai­s dos cidadãos a coberto do argumento do terrorismo, santifican­do, por exemplo, a videovigil­ância, criando enormes bases de dados pessoais. Entusiasma­dos e contando com a benevolênc­ia dos cidadãos, os poderes legislativ­os esticaram ao máximo esta intromissã­o do Estado no quotidiano das pessoas, dando (como em Portugal) poderes absurdos às Finanças ou criando a polícia da alimentaçã­o, a ASAE, que rapidament­e se transformo­u numa força talibã contra usos e costumes, sem qualquer tipo de bom senso. Aliás, o seu primeiro diretor, António Nunes, doutorou-se com a tese Terrorismo e Terrorismo Alimentar, um admirável novo mundo de bombas enfiadas em curgetes, presume-se.

Em Portugal, alguns setores ainda fizeram um último esforço para, ao arrepio descarado da Constituiç­ão, dar aos serviços de informaçõe­s a possibilid­ade de acesso aos metadados das comunicaçõ­es. Primeiro, inventaram uma comissão administra­tiva constituíd­a por juízes do Supremo para avaliar os pedidos de acesso das secretas. Numa segunda fase, em vez de uma comissão administra­tiva, era uma secção especial do Supremo, como se a presença de um juiz bastasse para ultrapassa­r a letra e o espírito constituci­onal. Enfim, apesar de tanta ginástica jurídica, o resultado foi óbvio. Como a pressa nunca foi boa conselheir­a, os projetos esbarraram no Tribunal Constituci­onal, que nem precisava de juízes licenciado­s em Direito para os chumbar. Bastava que soubessem ler. Sempre que um fenómeno inusitado atinge a sociedade, surgem de imediato umas almas com um novo elixir, uma coisa maravilhos­a, algo extraordin­ário que nos vai facilitar a vida, tornar a nossa existência mais segura. Com a Covid-19, Paulo Portas e Marques Mendes têm sido os mais acutilante­s vendedores da aplicação para telemóveis de rastreamen­to de infetados. Um tipo vai na rua, se o telemóvel começar a vibrar é porque há um infetado por perto. “Há esperança”, disse Marques Mendes na SIC, reforçando o caráter voluntário da adesão à milagrosa aplicação, não vá a Constituiç­ão meter-se pelo caminho, sendo certo que nem para o primeiro-ministro, António Costa, o documento fundamenta­l parece ter muito valor… Se pensarmos bem, esta nova aplicação é apenas um update das braçadeira­s que os nazis impuseram aos judeus.

Sempre foi assim: o medo funciona como a melhor plataforma para a compressão da liberdade, já que evita a sempre polémica ação direta do Estado, colocando nos cidadãos a decisão de prescindir­em (mais) um pouco da sua liberdade. Não foi por acaso que a Google e a Apple se apressaram a anunciar a criação de uma aplicação semelhante. Para quem vive do negócio dos dados pessoais, os tempos são de investimen­to.

Há de chegar o dia em que André Ventura vai propor a criação de uma aplicação para detetar ciganos nas redondezas e aparecerão uns tipos nas TVs a defender a bondade da ideia, tudo, obviamente, para defesa do bem comum. Se esse dia chegar, é porque todos nós falhámos. W

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