SÁBADO

Mil hectares

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do”, “introverti­do” e “sonso” são os adjetivos mais usados para o descrever. Gostava de jogar futebol e póquer online. “Fumava umas brocas e dava na coca, como muitos aqui, mas nunca foi viciado”, diz André, um dos seus companheir­os de futebolada­s. “Nunca foi agressivo nem gajo de andar à porrada”.

No Lapadusso, há um ringue de futebol com vista para o mar, dois cafés, uma mercearia e um silêncio causado pelo estado pandémico que só o grasnar das gaivotas interrompe. Paula vem à varanda; está de luto da cabeça aos pés, rosto cansado e abatido. “O que estamos a passar não se deseja nem ao pior inimigo”, desabafa, antes de recusar prestar declaraçõe­s à SÁBADO. Paula alimentou as suas duas filhas, Sandro e a sua irmã, Beatriz, de 19 anos, para além de cuidar da mãe, idosa. Tudo com o salário mínimo auferido a cortar e enlatar sardinhas e cavalas na fábrica de conservas da Thai Union Frozen Products, o maior empregador de Peniche, onde Sandro também trabalhou nos últimos anos, antes de começar a planear regressar à Bélgica.

Na passada quinta-feira, quando Sandro Bernardo, 32 anos, avisou as autoridade­s do desapareci­mento de Valentina, os familiares de Peniche arrancaram para a freguesia vizinha de Atouguia da Baleia para o apoiar e participar­em nas buscas. As câmaras de televisão apanharam Sandro em lágrimas a abraçar a tia que o criou e a irmã mais nova a confortá-lo com carícias nos ombros. Mas Paula e Beatriz, tal como o país inteiro, estavam a ser enganadas: Sandro sabia que Valentina não estava desapareci­da, mas morta, até porque tinha sido ele a esconder o cadáver com a ajuda da mulher, Márcia. Ao mesmo tempo, a região mobilizava-se na busca por Valentina: cerca de 600 voluntário­s percorrera­m uma área de 4 mil hectares, foram usados drones e cães. Mas durante três dias e três noites nem rasto da menina.

Os três blocos de prédios da Fundação Salazar ficam nas traseiras da Pastelaria Mónaco, no humilde bairro de Vila Maria, em Peniche. Parece um cenário de uma cidade soviética – paralelepí­pedos de cimento circundam um enorme empedrado retangular, desprovido do alarido das crianças, confinadas em casa para escapar ao vírus. Ao fundo, as barracas da comunidade cigana. Márcia e as suas quatro irmãs, filhas de Leonor, fadista amadora, e de João Rato, pedreiro, fizeram-se mulheres por aqui. “A Márcia sempre teve muita energia, era rebelde, mas nunca se meteu no crime nem fez asneiras”, diz Maria, vizinha do rés-do-chão e amiga da família.

Emigrar para a Bélgica

Os pais emigraram para a Bélgica, levando duas das irmãs com eles. Márcia juntou-se com Hugo, de Atouguia da Baleia, motorista de uma empresa frutícola com quem teve um filho, em 2008. “Ela veio aqui para a Atouguia e cheguei a conviver com ela. Parecia-me uma boa moça. Nenhum sinal de que pudesse fazer mal a uma criança”, diz Isaul Rodrigues, amigo do ex-companheir­o de Márcia. Todavia, a relação não durou muito. Por volta de 2012, Márcia terá conhecido Sandro na conserveir­a penichense e começaram a namorar. No ano seguinte, ele esteve em Bruxelas pela primeira vez, já através da ligação com os familiares da companheir­a: “Mas a mãe da Márcia nunca gostou muito do Sandro”, acrescenta Maria.

Foi a área percorrida pelas buscas por Valentina, onde participar­am 600 pessoas, ajudadas por drones e cães pisteiros

“[SÓNIA] SOLTOU UM GRITO DE DOR QUE NUNCA ME VAI SAIR DA CABEÇA”, LAMENTA SANDRA

Márcia e Sandro casaram-se em 2018. Tiveram duas filhas – uma tem hoje quatro anos e outra cerca de 12 meses. Instalaram-se no apartament­o da Fundação Salazar, onde viveram mais de um ano. “No entanto, um erro de uma irmã de Márcia fez com que o banco arrestasse a casa e eles fossem despejados”, conta Maria. Foi então que, há poucos meses, o agregado se mudou para a casa de Atouguia, alugada em nome da fadista radicada na Bélgica e paga por ela. Valentina juntou-se. De acordo com a vizinha de Márcia, a família estava apenas à espera de poder viajar para se mudar para a Bélgica, onde até já tinham uma casa pronta.

No Bombarral, não havia razões de queixa em relação ao comportame­nto da madrasta: “Ela vinha aqui buscar e pôr a Valentina e sempre mostrou gostar da menina”, diz Sandra Costa, prima de Sónia.

Sónia estava em casa da prima Sandra no domingo de manhã. As buscas noturnas tinham sido infrutífer­as mas a mãe mantinha a esperança de encontrar a criança com vida. A hipótese de crime não lhe passava pela cabeça. Até que na televisão surgiram as notícias de última hora: “Menina de Peniche encontrada morta”. “Ela soltou um grito de dor que nunca me vai sair da cabeça”, lamenta Sandra. W

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