Monstros escondidos nas sombras
LER PATRICIA HIGHSMITH,
em particular a série de cinco romances protagonizados por Tom Ripley, produz inquietação, excita o medo, introduz-nos num mundo claustrofóbico e irracional. Ou, como dizia Graham Greene, nos livros dela “entramos sempre com uma sensação de perigo pessoal e com a cabeça a espreitar por cima do ombro”.
Ripley é uma personagem fascinante e aterradora, um criminoso amoral e culto, com uma memória prodigiosa e aptidão para a Matemática, que pinta e desenha, toca as Sonatas para Cravo de Domenico Scarlatti e as Variações Goldberg de Bach, lê Schiller e Molière, colecciona mobiliário antigo e obras de arte (as paredes de casa estão decoradas com originais de Van Gogh e de Magritte, e desenhos de Cocteau e Picasso), possui um jardim com flores, que trata com dedicação.
Não suporta ver a governanta, Mme. Anette, a mergulhar um par de lagostas numa panela com água a ferver, por isso se retira da cozinha (para não assistir ao sofrimento dos animais), mas ao mesmo tempo consegue matar a sangue frio, de maneira fulminante, os intrometidos que ameaçam esse conforto, esse gosto pelas coisas boas da vida burguesa.
Em O Talentoso Mr. Ripley (1955), Tom é um jovem de 26 anos que reside em Nova Iorque e se dedica a falsificar documentos, a violar correspondência e a extorquir dinheiro. A sorte bate-lhe à porta quando conhece um milionário da construção naval, Herbert Greenleaf, e este lhe pede para ir a Itália convencer o filho Dickie (ou Richard Greenleaf) a regressar aos Estados Unidos. Ripley parte para a Europa, assassina Dickie e fica-lhe com a fortuna graças a um testamento falso.
No livro seguinte, Ripley Under Ground (traduzido pela Relógio d’Água com o título A Máscara de Ripley), Tom aparece a viver em Villeperce (a poucos quilómetros de Fontainebleau,
França), numa propriedade rural que comprou graças ao dinheiro da herança de Dickie, e já casado com Héloïse, uma mulher rica e futura beneficiária de uma companhia farmacêutica.
Manipuladora e desapiedada, cínica e malévola, fria e perturbante, Patricia Highsmith induz o leitor a colocar-se activamente do lado de Ripley, leva-o a sentir uma estranha identificação com o assassino e a desejar que não seja apanhado ou castigado (o que abala as nossas respostas morais e transforma estes livros numa espécie de policiais invertidos). Talvez porque nestes romances, como em todos os outros assinados por ela – e ainda nas centenas de contos que escreveu –, ficamos a conhecer muito melhor o criminoso que qualquer outra personagem. E talvez, também, porque as vítimas são quase sempre indivíduos estúpidos e aborrecidos…
As diversas faces da banalidade do mal exprimem-se diversamente nas obras de Patricia Highsmith, onde também assistimos a um regresso regular a temas como a irracionalidade da razão ou as flutuações da identidade (Ripley troca de personalidade como as cobras mudam de pele).
Os conflitos psicológicos daí resultantes mostram que os seres, por causa dos seus impulsos antagónicos (o antagónico, como sabemos, harmoniza-se na ambiguidade) oscilam permanentemente entre o paraíso e o inferno, e que o mundo exterior, muitas vezes, não passa de uma mera projecção dos nossos pensamentos, da nossa imaginação e das nossas fantasias.
Este interesse quase clínico pela duplicidade da consciência humana, pela massa de contradições e de perversões que existem por trás da fachada respeitável dos indivíduos, afastam-na de autores como Dashiell Hammett ou Raymond Chandler, clássicos do género policial, e aproximam-na de Fiódor Dostoievski, Henry James, Søren Kierkegaard ou Albert Camus.
Tal como nestes últimos, a escrita de Highsmith move-se em torno dos
efeitos psíquicos da culpa e do poder destruidor da frieza, da distância, da indiferença e da solidão emocional. Na verdade, tirante alguns casos, todos os criminosos e delinquentes que saíram da cabeça maliciosa desta escritora, que apesar de lésbica detestava as mulheres, são desprovidos de quaisquer sentimentos de culpa, como de resto de quaisquer considerações e compromissos éticos.
No seu primeiro romance, Strangers on a Train (em português O Desconhecido do Norte Expresso, que Alfred Hitchcock levou ao cinema), Bruno e Guy, à semelhança de Raskolnikov de Crime e Castigo, imaginam-se a matar a mulher um do outro antes de cometerem os respectivos assassinatos, ensaiam psicologicamente todos os passos dos crimes que vão executar e convertem-nos em objecto de uma negociação comercial, completamente desligada das existências humanas concretas.
As personagens do mundo intrincado desta texana, nascida a 19 de Janeiro de 1921, raramente manifestam os seus apetites sexuais (com excepção de O Preço do Sal, romance autobiográfico que descreve a sua fixação por outra mulher, e que foi adaptado ao cinema pelo realizador Todd Haynes, no filme Carol, com interpretações de Cate Blanchett e Rooney Mara). Apesar de nunca o retratar como gay ou bissexual, a fixação de Ripley por Dickie Greenleaf, e a completa ausência de desejo sexual por Héloïse nos quatro livros seguintes, denunciam uma homossexualidade latente ou, pelo menos, uma insegurança em relação à sua identidade sexual.
Segundo o The Guardian, no próximo ano, um século depois do seu nascimento, serão publicados pela primeira vez os diários íntimos de Patricia Highsmith, onde ela se confessa racista, anti-semita e misógina. O que promete reforçar e renovar “a tão famosa e tão verbosa questão” de saber se é possível estabelecer uma diferença entre a cantiga e o cantor, se devemos deitar a criança fora juntamente com a água suja do banho.
Dito de outro modo, se podemos deixar de gostar de um livro, cuja leitura nos proporcionou tanto prazer e nos ensinou a colocar os problemas humanos numa perspectiva mais ampla, porque de repente descobrimos que foi escrito por uma ignóbil canalha.
Andrew Wilson, autor de Beautiful Shadow. A Life of Patricia Highsmith (2003), afirmou no jornal atrás citado que Highsmith “podia ser uma mulher monstruosa, violenta e bastante desagradável. Odiava os negros, odiava os judeus e odiava as mulheres, mas também havia razões que ajudam a perceber porque é que ela era assim” (nomeadamente: a rejeição da mãe, as tentativas de sedução do pai e os abusos sexuais de que foi alvo quanto tinha apenas 4 ou 5 anos).
Pela parte que me toca, vou continuar a lê-la, certamente de outra maneira e de olhos mais abertos ou prevenidos, ainda assim a lê-la. E, desconfio, a considerá-la uma das escritoras que foi mais longe e mais fundo, com uma precisão assustadora, na descrição da crueza e da maldade do bicho humano. W