A vida inteira
PANDEMIAS TRAZEM MUDANÇAS.
Mudanças são perigosas para os hábitos. Donde, pandemias são perigosas para os hábitos.
Este silogismo, acessível a uma criança de 5 anos, não foi acessível para mim. Insensatamente, recebi a quarentena de braços abertos e saltei lá para dentro como um cão idiota e feliz a chapinhar nas águas de um riacho.
Não havia coisa melhor: ficar em casa, de consciência limpa, a ver a preguiça transformada em responsabilidade social.
Hoje, olho para trás e lamento a ingenuidade. Tudo o que é bom na vida é ilegal, imoral ou engorda? Palavras sábias de um sábio qualquer. A preguiça não foge à máxima. Mas quando não estamos a fazer nada de mal, onde está o mal? E o prazer do mal?
Então saio para a rua e não há rua. Duplo golpe. Não sou apenas preguiçoso. Sou um preguiçoso urbano, que precisa da cidade para sobreviver. Não no sentido básico do termo, embora eu seja um básico entre tachos e panelas. (Qual é a diferença?)
Falo no sentido humano: os outros, os rostos dos outros, as vidas dos outros. Lembro sempre aquele momento luminoso num filme de
Woody Allen em que ele, aterrorizado pela própria hipocondria, tenta serenar-se com a certeza de que vive na sua cidade. Onde existem pessoas, livrarias, restaurantes. A vida inteira. Como é possível que tudo acabe, de um momento para o outro, com um diagnóstico cruel?
De um momento para o outro, tudo acabou, temporariamente que seja. E eu, bicho de hábitos, fiquei sem eles. Ainda que tudo volte, ninguém me devolve as manhãs em que não caminhei com o meu filho até à escola, e ele a tentar explicar-me a diferença técnica entre um ninja e um samurai.
Quando voltarmos a esse simpósio, talvez para o ano, já ele terá crescido o suficiente para desprezar esses exóticos guerreiros. Eu terei saudades deles. Terei saudades dele.
É imoral. Eu sou imoral. E pergunto ao autor deste texto, que por acaso sou eu, como é possível ele lamentar-se das coisas triviais quando há quem tenha perdido muito, ou até tudo, para o endiabrado vírus?
Não tenho desculpas, excepto as mais óbvias: quem pensa que as coisas triviais são apenas triviais provavelmente nunca passou pelas grandes catástrofes. Eu, que já tive os meus aperitivos, sei bem o que valem ruas cheias, cinemas abertos, amigos à mesa, livros à espera, cafés animados, a noite na cidade, o estranho encontro entre estranhos, a simples evidência de que o mundo continua aberto mesmo quando o nosso mundo se fecha. Não conheço melhor definição de esperança, ó tristes!
É a ela que me agarro quando passo por ruas desertas, cinemas sem cinema, jantares sem jantaradas, livrarias sem novidades, cafés sem café e noites silenciosas e vazias que se espraiam sem história até madrugadas silenciosas e vazias. Tudo reabre lentamente?
Certo, certíssimo. Errado, erradíssimo: como um arqueólogo, vou contemplando as lojas a meio gás, os restaurantes mortiços, os fantasmas que passam de máscara e então explico, apontando para as ruínas: “Isto, aqui, já foi uma grande civilização.” Voltará a ser?
Especialistas diversos negam e pontificam. “Nada será como dantes”, dizem eles, com o prazer perverso de quem sempre sentiu ódio pelas vidas livres e banais. Querem refazer, esquadrinhar, comandar, cortar, enjaular, limitar. Fazer da excepção a regra e da regra o novo futuro.
Eu quero o velho passado e não aceito menos do que o velho passado. Mas para isso não basta vencer o vírus. É preciso vencer os vírus que o vírus trouxe: estes seres igualmente microscópicos e daninhos que vão destruindo e parasitando o nosso imaginário.
De espada em riste, escuto quem sabe: ou somos ninjas, e samurais, ou não seremos nada. Preparemo-nos para a batalha, o Verão está a chegar. W