SÁBADO

NUNO ROGEIRO

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Na primavera de 2011, filmei um episódio do Sociedade das Nações em Beirute. Conhecia bem esta cidade magnífica de 2 milhões de habitantes, aumentados por centenas de milhares de refugiados, como no campo de Mar Elias, mesmo ao pé do quartel-general do exército, 6 km a sul do porto hoje pulverizad­o.

Para além de negociar uma entrada arriscada na Síria (onde começava a guerra civil), tinha ido ao Líbano entrevista­r Alastair Crooke, diplomata e ex-agente do MI6 britânico, diretor do Conflicts Forum, um instituto dedicado a sentar inimigos à mesma mesa.

Devido ao atraso num pedido para entrevista­r também Hassan Nasrallah, o chefe do Partido de Deus, cheguei à capital do Líbano já de noite.

Mas ainda tive tempo para um passeio meditabund­o e nostálgico pelas Corniches el Manara e Ein Mreisse, perto de Zaitunay Bay, do Yacht Club, e do Madame Bleu, marcos à beira-mar.

Beirute, despertada de uma guerra civil de décadas, e da ocupação militar de dois vizinhos, recuperara algo da sua glória. Fez das cinzas coração. Beneficiou edifícios de traça, lançava grandes projetos, e procurou combater um dos seus maiores flagelos, o caos do lixo.

Tinham-se elevado hotéis de referência, para capturar algo da fama de um grande centro de serviços, sem recursos naturais para além da habilidade, bons contactos e preparação do seu escol.

Exemplos disso eram os modernos e elegantes Staybridge Suites, na Alfred Nobel, o Movenpick, junto ao centro de mergulho Calypso, em Ramleh al Bayda, ou o Kempinski Summerland, no bairro de Bir Hasan.

Quando me dirigia ao prédio Q

Q amarelo da embaixada do Irão, na El Kouds, fui intercetad­o por um velho amigo, ex-militar europeu, que me apresentou L., um israelita de olhar penetrante.

Ficámos a conversar quase uma hora: sobre a bondade ou não da “equidistân­cia” estratégic­a do Líbano face ao pan-arabismo extremo e ao Ocidente, sobre a repartição de postos do Estado por representa­ntes das etno-religiões, sobre as semelhança­s com as Beirutes passadas, sob domínio otomano e francês.

Esta cidade luminosa, cruzamento de gentes e fés, inteligent­emente pós-moderna face a um mar azul, desaparece­u.

Foi-se o comando da Marinha, na rua Charles Helou. Destruído o Villa Clara, em Qobayat, restaurant­e requintado sempre com muitos embaixador­es, espiões, empresário­s e jornalista­s. Podia ter sido eu a morrer ali, ou no Four Seasons perto do porto, com tantos feridos retalhados pela fachada de vidro eclodida.

Destruído em parte o valioso Museu Nacional, e o quarteirão de Mar Mikhael, onde filmámos algumas cenas, recheado de restaurant­es e bares sofisticad­os, do Baron ao Tavolina, do Enab ao Divyy, das lojinhas das ruas Pharoun e Madrid ao Samakati, sempre com marisco fresco. Fortemente tocado, do lado oposto do porto, o tradiciona­l hotel Le Gray, o mais caro da cidade, ou o Cocteau, com cozinha especialme­nte criativa.

300 mil almas sem abrigo.

Não se percebe como é que o Hezbollah, que representa 10% dos deputados no parlamento, e esteve sempre envolvido na boa ou má sorte dos governos, permitiu a manutenção, sem condições de segurança, de um armazém 12 carregado de nitrato de amónio, apreendido em outubro de 2013.

Na verdade, o partido de Nasrallah controlava o Ministério dos Transporte­s, responsáve­l portuário, e das Finanças, tutor das Alfândegas.

Como foi possível, junto a uma “bomba nuclear em potência” (palavras do líder do Hezbollah sobre um depósito semelhante, na sua odiada Haifa), deixar ficar depósitos de pirotecnia, e autorizar trabalhos com maçaricos?

Os alegados depósitos de armas do partido ficavam 11 km mais a sul, perto do aeroporto, mas o que dormia nas docas foi suficiente para evaporar a cidade que conheci e amei.

Palavras de um amigo: “As ruínas dos banhos romanos, à saída das docas, são agora mais apresentáv­eis do que os silos derretidos, os navios civis e militares carbonizad­os e as crateras que parecem levar ao inferno.” W

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