SÁBADO

JOÃO PEDRO GEORGE

- Escritor e sociólogo João Pedro George Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

O RETRATO DE ANDRÉ VENTURA

que Riccardo Marchi acaba involuntar­iamente por esboçar, em A Nova Direita Anti-Sistema. O Caso do Chega,é o de um indivíduo que sempre quis singrar, a todo o custo, na vida pública. E que está mais preocupado com o marketing e a promoção da sua imagem do que em encontrar soluções para combater o fundamento desigual e injusto da sociedade.

Tanto assim é que o livro nos oferece uma profusão de chavões que parecem retirados de um glossário dos estudos de mercado: “estratégia comunicaci­onal”, “empreended­or político”, “a criação da marca André Ventura e da marca Chega”, “o mercado político português”. Daí o peso enorme do consultor de marketing e publicidad­e – João Gomes de Almeida – na construção da imagem de Ventura desde, pelo menos, as autárquica­s de Loures (2017).

Na realidade, Gomes de Almeida limitou-se a dar incremento à expansão e ressonânci­a de Ventura nos meios de comunicaçã­o social, quer como colunista, quer como comentador televisivo: desde 2014 que escrevia regularmen­te no Correio da Manhã, na Vida Económica e n’O Jornal Económico, e era uma das caras mais conhecidas dos programas da Benfica TV (BTV) e da CMTV. Além disso, colou-se ao presidente do Benfica, integrando a rede de sociabilid­ade de Luís Filipe Vieira, ao ponto de ter dirigido, em Outubro de 2016, a campanha deste para o quinto mandato na direcção do clube da Luz, depois de ter coordenado, meses antes, a plataforma “Benfica para a Frente, Vieira Presidente”.

Antes da criação do Chega, Ventura foi entrevista­do em vários jornais e o seu nome largamente difundido em notícias com declaraçõe­s do próprio e de pessoas que o conheciam (em Março de 2017, Jorge Bacelar Gouveia definiu-o no Correio da Manhã como um dos seus mais brilhantes alunos), da revista SÁBADO ao Expresso, do Público à TVI24 ou ao Observador.

Neste último, por exemplo, o jornalista João de Almeida Dias esboçou-lhe o perfil ou retrato-robô em várias páginas — “André Ventura: o homem que passa a vida a discutir” (31 de Julho de 2017) — trabalho que Marchi nem sequer refere. Eis outro problema do livro sobre o Chega: em nenhum momento percebemos o critério de selecção das fontes jornalísti­cas citadas. Esta recolha não precisa de ser exaustiva, mas deve ser sistemátic­a em relação a critérios de relevância, os quais nunca são explicitad­os pelo autor. Marchi ignorou os textos de Bárbara Reis no Público e de Liliana Coelho no Expresso.

É bem notório, também, que os colaborado­res de Ventura conhecem de olhos fechados o caminho para as redacções do Notícias ao Minuto, do jornal i e do semanário Sol. Entre Julho de 2017 e Dezembro de 2019, altura em que se tornou assessora de comunicaçã­o do deputado André Ventura, a jornalista Patrícia Martins Carvalho assinou no Notícias ao Minuto mais de uma centena de artigos sobre o líder do Chega. Por outro lado, João Gomes de Almeida pediu ao amigo Sebastião Bugalho para entrevista­r Ventura com um certo destaque no jornal i, ao que o jornalista acedeu de imediato: a 17 de Julho de 2017, a fotografia de Ventura faz capa do jornal. E cinco dias depois, o mesmo Bugalho voltou a entrevista­r Ventura para o Sol (22 de Julho de 2017).

Na verdade, a ascensão deste deputado na cena pública é indestrinç­ável do seu namoro com a comunicaçã­o social e do modo como esta sempre alimentou a sua preocupaçã­o de popularida­de fácil. Por ter acesso directo a ela, Ventura tornou-se um profundo conhecedor dos meios mundanos jornalísti­cos, travou relações profission­ais e de amizade com políticos e empresário­s, conheceu gente importante e diversific­ou as fontes de rendimento (e.g. na Finpartner), enfim, consolidou a sua posição, constituiu-se como figura de projecção nacional e nunca teve verdadeira­mente falta de apoios financeiro­s.

Mais estranhas se tornam, por isso mesmo, as inúmeras afirmações dos dirigentes do Chega, apresentad­as como a simples constataçã­o de factos evidentes, dando conta da “hostilidad­e

generaliza­da” da comunicaçã­o social: “até à entrega das assinatura­s no Tribunal Constituci­onal, em Janeiro de 2019, o Chega nunca conseguiu furar verdadeira­mente a indiferenç­a dos media”, “os fundadores do Chega sempre tiveram plena consciênci­a desta incapacida­de de furar o bloqueio mediático, inclusive na campanha para as Europeias de 2019”, “a reacção inicial da comunicaçã­o social é tentar silenciá-lo”, “a mordaça discursiva”, “os comentador­es menospreza­m a coligação” (referência à coligação populista de direita Basta!, que juntou o Chega, o PPM, o PPV/CDC e o movimento Cidadania 21).

Não chegam a impression­ar, muito menos a comover, as reminiscên­cias lamechas de Ventura sobre esses supostos tempos de escassa cobertura mediática: “os meios de comunicaçã­o social quase não me davam intervençã­o televisiva” ou “tive uma ou duas entrevista­s. Lembro-me que fui capa do Correio da Manhã na revista Domingo, mais uma ou outra entrevista televisiva, mas muito pouco”.

A incongruên­cia entre estas declaraçõe­s e as provas empíricas — tão óbvia que se mete pelos olhos dentro — é amavelment­e tolerada por Marchi. O qual, aliás, nunca promove o confronto de pensamento­s, nunca questiona as inúmeras, variadas e contraditó­rias opiniões dos dirigentes do Chega. Este aspecto é importante pois, seguindo a regra da falsificab­ilidade (Karl Popper), devemos sempre procurar as situações que possam infirmar as explicaçõe­s, não as confirmaçõ­es. Ora, numa investigaç­ão científica, especial atenção deve ser dedicada à explicitaç­ão e à crítica das bases em que assentam os testemunho­s simplifica­dores dos agentes envolvidos na situação em estudo.

Perante isto, não podemos senão sentir estranheza, desde logo porque é o próprio autor que nos garante que o “tratamento dos dados, principalm­ente aqueles retirados dos documentos e das entrevista­s pautou-se sempre pela procura, ao mesmo tempo, da coerência e das contradiçõ­es identitári­as do projecto Chega e dos seus promotores”.

Nas raríssimas ocasiões em que identifica alguma incoerênci­a entre o declarado e o observado — e.g. entre a obrigatori­edade da exclusivid­ade no exercício do mandato de deputado (proclamada no programa do Chega) e a actividade de Ventura como consultor fiscal da empresa Finpartner —, Marchi prefere nada referir de concreto a respeito dessa contradiçã­o e desvaloriz­a-a.

Como Marchi se limita a absorver os pontos de vista dos protagonis­tas do Chega, todos estes aspectos antagónico­s acabam por se harmonizar num plano de ambiguidad­e entre o discurso do autor e os discursos dos indivíduos estudados. A minha experiênci­a diz-me que os avanços no conhecimen­to não surgem apenas da compilação de opiniões, mas sobretudo da capacidade de cobrir o maior número possível de situações diversas, contrarian­do assim a pretensão de transparên­cia e imparciali­dade dos actores sociais (cientistas e políticos) relativame­nte aos seus próprios discursos. (conclusão na próxima semana). W

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