SÁBADO

Waldemar Bastos (1954-2020)

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Músico angolano que fugiu da guerra civil para Portugal e durante décadas foi impedido de regressar ao seu país, Waldemar Bastos morreu na segunda feira, 10 de agosto

David Byrne descobriu-o e, fascinado, revelou-o ao mundo através da sua editora, a Luaka Bop, com o álbum Pretaluz, em 1997. Poderia ter sido o ano mais feliz da sua vida, não fosse ter coincidido com a morte do filho mais velho, Walter Bastos, assassinad­o aos 17 anos numa discoteca da Praia de Santa Cruz. Esta dor, da qual evitava falar, evocando os “desígnios de Deus” que a sua inabalável fé religiosa ajudava a aceitar, vinha juntar-se a outra, profunda: a impossibil­idade de regressar à terra onde nasceu – assunto recorrente da sua música, que apelava à “fraternida­de universal” – porque o regime, instituído pelo MPLA, não lhe perdoava ter fugido para Portugal em vez de lutar na guerra civil.

Sentia-se tudo na sua voz de tenor: apesar de límpida e forte, carregava um tremor pungente, especialme­nte quando cantava os clássicos que o lembravam de onde vinha, como Muxima, dos anos 1960 que gravou precisamen­te em Pretaluz, tornando-se um dos seus maiores êxitos.

Como recordou há um ano, ao Jornal de Angola, feliz por, graças ao novo presidente, ter finalmente conseguido regressar ao lugar onde nasceu (recebendo até o maior prémio do país, o Nacional de Cultura e Artes), sonhou durante décadas ir lá atuar – em vão: “Era um autêntico forasteiro na minha própria terra.”

Já famoso, com êxito consideráv­el na América, Europa e Extremo Oriente, jamais parou de denunciar o regime angolano, as perseguiçõ­es de que foi alvo – “nítidas em todo o lado”, como afirmou em 2016 à revista DW – e as ameaças à família, que “por medo” acabou espalhada pelo mundo: para estar com os filhos, Edair e Sidney Paz Bastos, tinha de viajar até Londres e Estados Unidos, com Laureana Gomes da Silva

Paz, sua mulher durante mais de quatro décadas.

O MPLA NÃO LHE PERDOAVA TER FUGIDO DA GUERRA CIVIL E PERSEGUIU-O AO LONGO DE DÉCADAS

Afro-luso-atlântico

Nascido a 4 de janeiro de 1954 em M’Banza Kongo, na então África Ocidental Portuguesa, atual Angola, Waldemar dos Santos Alonso de Almeida Bastos começou ainda criança a cantar e a tocar concertina – ensinado pelo pai, violonceli­sta e organista que tinha frequentad­o o Seminário –, optando mais tarde pela guitarra. Em 1982, de visita a Portugal, tomou a difícil decisão de não regressar ao seu país, então mergulhado na guerra civil. Viveu na Alemanha, França e Brasil, onde gravou o seu disco de estreia, Estamos Juntos, e em 1985 fixou-se em Lisboa, onde em 1990 editou Angola Minha Namorada, a que se seguiu, em 1992, Pitanga Madura, o álbum que o ex-Talking Heads David Byrne descobriu numa discoteca lisboeta, motivando o convite para gravar para a Luaka Bop, o que lhe deu reconhecim­ento mundial. Melhor Novo Artista nos World Music Awards de 1999 e único não fadista a atuar na cerimónia de transladaç­ão de Amália Rodrigues, sua amiga e fã, para o Panteão Nacional, em 2001, Waldemar Bastos, que definia a sua música como afro-luso-atlântica, editou ainda Renascence (2004), Love Is Blindness

(2008) e Classics of My Soul

(2012) encontrand­o-se a trabalhar num novo álbum acústico quando, há pouco menos de um ano foi diagnostic­ado com o cancro de que viria a morrer a 10 de agosto, aos 66 anos. W

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LUIS GRAÑENA

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