O Avante e a esterilização social
NAQUELE ESPÍRITO DE VINCU
LAR O PENSAMENTO à prática revolucionária, o PCP vai mesmo avançar para a realização da Festa do Avante. Como vem nos livros da especialidade, a transformação da realidade é um imperativo para um bom comunista. Mesmo que a ciência, esse braço armado do capitalismo, nos diga que os ajuntamentos de pessoas são um factor de risco para a propagação da Covid-19, um bom comunista sabe que isso pode não ser bem assim. Portanto, o seu papel é desconstruir a propaganda oficial com acções subversivas.
O que o autista Partido Comunista Português nos vai dizer a todos é que, apesar dos últimos meses de cautelas, provações, distanciamento social, com o fim do “passou bem” e espetáculos cancelados (nem todos, é certo), a malta pode ir confraternizar, beber uns copos e desfrutar do espírito de camaradagem comunista na Festa do Avante. Porque, tal como na Coreia do Norte, a Covid-19 não quer nada com o que seja comunista. Parece que o vírus é esquisito e prefere sociais-democratas, democratas-cristãos, trotskistas, ambientalistas e até os neo-facho-idiotas do Chega. Quanto muito, um comunista apanha uma gripe. Se lhe for diagnosticado mais do que isso, arrisca-se a um processo disciplinar e à consequente expulsão do partido.
Será mesmo possível desfrutar de um festival, cumprindo o distanciamento social? Noutros tempos, o jornal Avante! diria que sim. Só não jurava, porque isto é coisa de católicos. Mas como a disciplina interna já não é o que era, o próprio órgão oficial do Partido foi ouvir quem percebe disto de festivais de música, rocks e afins. E disse Adolfo Luxúria Canibal, vocalista dos Mão Morta: “A música, e o rock em particular, é uma manifestação gregária, em que o rock se expressa por uma profunda comunhão física, que toma formas, do crowd-surfing ao stage diving, nas mais radicais, mas sempre o contacto, o abraço, a dança, o grito coletivo - como conciliar isso com uma proteção sanitária, cuja primeira regra é o distanciamento físico? Impossível! Só através de um simulacro de rock, um rock sem uma sua componente essencial, que é o público na sua expressão de loucura colectiva” (Avante!, 6 de agosto). O músico terminou a entrevista dizendo que lá terá que fazer o “concerto possível”. Ou seja, aparentemente, Adolfo Luxúria Canibal acha que vai tocar para milhares de pessoas agarradas ao chão e não, como escreveu Saramago e é hábito neste tipo de acontecimentos, frequentemente levantadas do chão. Num partido como o PCP, isto até poderá ser possível, caso o Comité Central avance para um programa de esterilização social em massa (sempre com as massas!), fazendo com que as milhares de pessoas que se vão juntar na Quinta da Atalaia se mantenham impávidas perante os inúmeros estímulos à sua volta. É mais uma vitória do PCP: se o capitalismo defende o distanciamento social, o comunismo dá um passo em frente e despoja o ser humano de qualquer reacção a estímulos não autorizados oficialmente. No fundo, tal como na Coreia do Norte, a malta que colocar os pés na Atalaia sabe quando e como é que pode aplaudir, levantar os braços, conversar e pular enquanto dança A Carvalhesa.
Com a subserviente Direção-Geral da Saúde a autorizar a festança – do ponto de vista técnico, como é óbvio – o PCP prepara-se para nos dar mais uma lição de irresponsabilidade total num contexto de pandemia. No passado, correu o mito de que os comunistas comiam criancinhas ao pequeno-almoço. Hoje, o mito é outro: um comunista é, devido à sua natureza, imune à Covid-19. Estamos convidados a acreditar nisto, tal como Bernardino Soares acreditava na democracia da Coreia do Norte ou Rita Rato desconfiava dos gulags. Com alguma boa vontade, a diretora-geral da Saúde até surgirá em público a confirmar esta tese. A força do PC vê-se assim. W