CUIDADO, NEM TUDO O QUE LUZ É OURO
Com o metal a bater recordes, fomos tentar comprar uma barra num banco. É mais difícil do que parece e ainda bem – o ouro está longe de ser um refúgio seguro para os pequenos investidores.
NO NOVO BANCO, A BARRA MAIS PEQUENA À VENDA EXIGE UM INVESTIMENTO DE 5.815 EUROS
“Não vendemos barras de ouro”, diz o funcionário solícito da agência do BPI, no centro de Lisboa. Em vez disso, o banco promove a venda de alguns produtos em ouro, como ourivesaria, que o funcionário mostra em exposição numa sala à parte na agência, com colares, brincos, pulseiras e anéis de alguns dos principais designers do País. Também há, por vezes, moedas de ouro para colecionismo, edições limitadas sobre o centenário das aparições em Fátima ou com a efígie do ícone Eusébio.
Aqui a procura não era alta para as barras de ouro que muitos bancos vendem, tipicamente com duas, cinco ou 10 gramas de peso. “A revenda de barras de ouro é muito difícil para quem as compra”, explica, para justificar porque o banco não vende esse produto. Além disso, as pessoas não sabem o que fazer às barras – ao contrário das joias, este produto não tem uso e a sua guarda implica um risco e pode levar a custos de armazenamento.
Mas são as barras aquilo que melhor capta a cotação recorde do ouro – o valor das libras e moedas de ouro depende também da cunhagem e de outras características – e a SÁBADO continuou a procurá-las noutros bancos, como cliente-mistério. Na Caixa Geral de Depósitos também não havia barras à venda, nem previsão de quando haverá – fonte oficial do banco público explicaria, depois, que este deixou de vender ouro em barras há alguns anos. A subida do preço acaba por dissuadir alguns bancos de comprarem ouro, caro, que não sabem se conseguirão vender.
No Novo Banco há barras à venda, mas só a partir de 100 gramas de peso. Ao preço indicado à porta da agência (em tempo de pandemia alguns atendimentos foram feitos assim) – 58,15 euros por grama –, comprar esta barra naquele momento significaria gastar uns módicos 5.815 euros. Também há barras de um quilo, naquele dia a 58.150 euros cada.
Foi no quarto banco do grupo de maiores instituições visitadas pela SÁBADO, o Millennium BCP, que encontrámos ouro, por assim dizer: o banco vende barras de duas gramas, mesmo a não clientes. O funcionário informa que o preço naquele momento são 139,04 euros, mas que o valor é meramente indicativo – a volatilidade é alta e o preço para quem compra é fixado no momento da compra, explica. Compra essa que, assegurou, seria um processo simples: era uma questão apenas de telefonar a encomendar e, depois, de levar o dinheiro para a troca.
Outros bancos mais pequenos, como o Carregosa, também vendem ouro em barras de vários pesos, a partir de um grama. Promovido como um investimento numa
“reserva de valor”, o ouro exige cautelas: num trabalho publicado há nove meses, a revista Deco Proteste explicava que o banco dá uma cotação de compra aos compradores que dura apenas 15 minutos, um sinal da volatilidade evidente dessa reserva de valor.
Uma febre, dois mercados
A pequena corrida ao ouro pela SÁBADO foi feita para perceber se está a haver uma corrida ao ouro na sua forma mais pura, as barras, num contexto em que o preço da matéria-prima subiu pela primeira vez acima dos dois mil dólares por onça (31,1 gramas). A valorização do ouro vem do final de 2018, mas ganhou força este ano com o choque económico inédito causado pela pande
mia – a cotação do metal que é uma matéria-prima e ao mesmo tempo uma reserva de valor subiu 35% este ano e o consenso no mercado é de que esta subida ainda não terminou. A valorização, por um lado, surge em contramão com o colapso das economias globais e a descida da procura por ouro físico – a procura por joalharia em mercados que são grandes compradores de barras de ouro, como a China e a Índia, caiu. Mas o mercado de ouro físico é um de dois mercados de ouro – o outro é o financeiro e é nesse que a febre está a subir.
O mercado físico reúne os participantes na compra e venda de ouro físico, das empresas de minas aos refinadores, joalheiros e investidores massivos como os bancos centrais – o Banco de Portugal, por exemplo, tem 382,5 toneladas de ouro, a 14ª maior reserva do mundo, segundo o World Gold Council, uma organização global para a promoção dos mercados do ouro. Este mercado tem como principal praça Londres, algo que segundo o The Wall Street Journal data desde a primeira corrida ao ouro, em 1697. O outro mercado, o financeiro, não é físico – é eletrónico e permite a quem nele participa especular sobre os movimentos dos preços sem nunca ter uma barra no cofre (para as empresas de extração de ouro, um contrato de futuro – que fixa o preço e a quantidade a ser entregue numa data pré-acordada – permite fazer uma espécie de seguro sobre a volatilidade dos preços). Este mercado tem a sua principal praça em Nova Iorque – e os preços que vemos referidos nas notícias são os deste mercado.
A subida dos preços dos futuros de ouro tem várias explicações possíveis: um ambiente de queda profunda das taxas de rendibilidade de ativos como as obrigações do Tesouro dos Estados Unidos realça as vantagens do ouro, um ativo que não paga dividendo ou juro (em tempos normais essa é uma desvantagem); a perceção de que o ouro é uma re- Q
Q serva de valor em tempos de mau comportamento das bolsas e outros ativos; e a desvalorização do dólar, que torna o ouro cotado em dólares mais apetecível para compradores que usam outras moedas. De um modo geral, estes são fatores ligados à fraqueza da economia global, que já existia antes da pandemia e que, entretanto, se agravou muito.
Não é para conservadores
O ouro pode ter uma imagem de ativo de refúgio contra a incerteza económica ou o risco de inflação (que não está neste momento nas cartas), mas a verdade está noutro lado: investir em ouro não é o que o imaginário comum retrata. “Não se investe em ouro – especula-se”, afirma o analista financeiro David Almas, autor do boletim de finanças pessoais Tlim. Os investimentos, explica, são suportados por algum tipo de expectativa de retorno – as ações têm dividendos, as obrigações pagam juros, o imobiliário gera rendas. “O ouro não tem nada que o suporte – quem o compra tem a esperança de o vender mais caro a outro especulador. Não é errado especular, mas é preciso ter consciência do que se está a fazer”, explica.
Para quem tenha aversão ao risco – perfil da maioria dos aforradores em Portugal – o ouro não é, por isso, propriamente um refúgio. “Os mais conservadores têm mais motivos para se manterem afastados, porque o ouro é ainda mais volátil do que os fundos de ações ou de obrigações”, aponta Almas. Além da volatilidade dos preços – motivada por fatores que o aforrador médio pode ter dificuldade em cruzar – juntam-se os custos para as pessoas de comprar e vender ouro físico. “As margens altas na compra e na venda arruínam possíveis ganhos”, alerta Jorge Duarte, analista da Deco Proteste.
A diferença entre o preço de venda e de compra praticada pelos bancos (compram a um valor em média 10% inferior ao que vendem) e outros eventuais custos (para guardar o ouro em barras, por exemplo) significam que, quando sai com a barra à rua, já perdeu uma percentagem considerável daquilo que aplicou nas barras. Ninguém comprará esse
“NÃO SE INVESTE EM OURO, ESPECULA-SE”, ALERTA O ANALISTA FINANCEIRO DAVID ALMAS
ouro ao preço que acabou de pagar, nos bancos é menos mau do que nas lojas [franchisings especializados em transacionar ouro]”, aponta David Almas. “O metal terá de valorizar muito para compensar a margem dos intermediários”, junta. Com peças de ourivesaria a margem de quem as compra é ainda mais penalizadora, nota também Jorge Duarte.
Uma possibilidade menos arriscada de exposição ao ouro – o ouro físico tem ainda o problema da depreciação e da segurança – é aplicar dinheiro em fundos que compram ouro e depois emitem ações que podem comprar, os ETF (de “Exchanged Trade Fund” ou fundos negociados em bolsa). Parte da febre global do ouro tem-se feito sentir nestes fundos, que no início deste mês detinham no seu conjunto mais ouro físico do que qualquer outro país, exceto os Estados Unidos – só em julho o fundo maior, o SPDR Gold Shares, atraiu três mil milhões de dólares dos investidores. Jorge Duarte observa que estes fundos envolvem um grau de literacia financeira que exclui muitos aforradores portugueses e recomenda, a quem queira entrar neste comboio, que não concentre aí mais de 5% a 10% das suas poupanças.
Nas agências bancárias que a SÁBADO visitou ninguém lembrou estes fundos ao investidor prospetivo que se mostrava interessado em aplicar dinheiro em ouro, mas também ninguém pregou as virtudes das barras de ouro como bom refúgio – das visitas e das conversas telefónicas com alguns gestores bancários, que preferiram o anonimato, não é possível concluir que os portugueses estejam a comprar ouro em grandes quantidades, pelo menos na forma mais clássica das barras. Para analistas como David Almas – que lembra que os bons fundos de ações bateram o ouro como aplicação de longo prazo nos últimos 40 anos –, quem quer segurança tem opções mais aborrecidas, mas menos arriscadas: certificados de aforro. Não é ouro – mas funciona melhor. W