SÁBADO

CUIDADO, NEM TUDO O QUE LUZ É OURO

Com o metal a bater recordes, fomos tentar comprar uma barra num banco. É mais difícil do que parece e ainda bem – o ouro está longe de ser um refúgio seguro para os pequenos investidor­es.

- Por Bruno Faria Lopes

NO NOVO BANCO, A BARRA MAIS PEQUENA À VENDA EXIGE UM INVESTIMEN­TO DE 5.815 EUROS

“Não vendemos barras de ouro”, diz o funcionári­o solícito da agência do BPI, no centro de Lisboa. Em vez disso, o banco promove a venda de alguns produtos em ouro, como ourivesari­a, que o funcionári­o mostra em exposição numa sala à parte na agência, com colares, brincos, pulseiras e anéis de alguns dos principais designers do País. Também há, por vezes, moedas de ouro para colecionis­mo, edições limitadas sobre o centenário das aparições em Fátima ou com a efígie do ícone Eusébio.

Aqui a procura não era alta para as barras de ouro que muitos bancos vendem, tipicament­e com duas, cinco ou 10 gramas de peso. “A revenda de barras de ouro é muito difícil para quem as compra”, explica, para justificar porque o banco não vende esse produto. Além disso, as pessoas não sabem o que fazer às barras – ao contrário das joias, este produto não tem uso e a sua guarda implica um risco e pode levar a custos de armazename­nto.

Mas são as barras aquilo que melhor capta a cotação recorde do ouro – o valor das libras e moedas de ouro depende também da cunhagem e de outras caracterís­ticas – e a SÁBADO continuou a procurá-las noutros bancos, como cliente-mistério. Na Caixa Geral de Depósitos também não havia barras à venda, nem previsão de quando haverá – fonte oficial do banco público explicaria, depois, que este deixou de vender ouro em barras há alguns anos. A subida do preço acaba por dissuadir alguns bancos de comprarem ouro, caro, que não sabem se conseguirã­o vender.

No Novo Banco há barras à venda, mas só a partir de 100 gramas de peso. Ao preço indicado à porta da agência (em tempo de pandemia alguns atendiment­os foram feitos assim) – 58,15 euros por grama –, comprar esta barra naquele momento significar­ia gastar uns módicos 5.815 euros. Também há barras de um quilo, naquele dia a 58.150 euros cada.

Foi no quarto banco do grupo de maiores instituiçõ­es visitadas pela SÁBADO, o Millennium BCP, que encontrámo­s ouro, por assim dizer: o banco vende barras de duas gramas, mesmo a não clientes. O funcionári­o informa que o preço naquele momento são 139,04 euros, mas que o valor é meramente indicativo – a volatilida­de é alta e o preço para quem compra é fixado no momento da compra, explica. Compra essa que, assegurou, seria um processo simples: era uma questão apenas de telefonar a encomendar e, depois, de levar o dinheiro para a troca.

Outros bancos mais pequenos, como o Carregosa, também vendem ouro em barras de vários pesos, a partir de um grama. Promovido como um investimen­to numa

“reserva de valor”, o ouro exige cautelas: num trabalho publicado há nove meses, a revista Deco Proteste explicava que o banco dá uma cotação de compra aos compradore­s que dura apenas 15 minutos, um sinal da volatilida­de evidente dessa reserva de valor.

Uma febre, dois mercados

A pequena corrida ao ouro pela SÁBADO foi feita para perceber se está a haver uma corrida ao ouro na sua forma mais pura, as barras, num contexto em que o preço da matéria-prima subiu pela primeira vez acima dos dois mil dólares por onça (31,1 gramas). A valorizaçã­o do ouro vem do final de 2018, mas ganhou força este ano com o choque económico inédito causado pela pande

mia – a cotação do metal que é uma matéria-prima e ao mesmo tempo uma reserva de valor subiu 35% este ano e o consenso no mercado é de que esta subida ainda não terminou. A valorizaçã­o, por um lado, surge em contramão com o colapso das economias globais e a descida da procura por ouro físico – a procura por joalharia em mercados que são grandes compradore­s de barras de ouro, como a China e a Índia, caiu. Mas o mercado de ouro físico é um de dois mercados de ouro – o outro é o financeiro e é nesse que a febre está a subir.

O mercado físico reúne os participan­tes na compra e venda de ouro físico, das empresas de minas aos refinadore­s, joalheiros e investidor­es massivos como os bancos centrais – o Banco de Portugal, por exemplo, tem 382,5 toneladas de ouro, a 14ª maior reserva do mundo, segundo o World Gold Council, uma organizaçã­o global para a promoção dos mercados do ouro. Este mercado tem como principal praça Londres, algo que segundo o The Wall Street Journal data desde a primeira corrida ao ouro, em 1697. O outro mercado, o financeiro, não é físico – é eletrónico e permite a quem nele participa especular sobre os movimentos dos preços sem nunca ter uma barra no cofre (para as empresas de extração de ouro, um contrato de futuro – que fixa o preço e a quantidade a ser entregue numa data pré-acordada – permite fazer uma espécie de seguro sobre a volatilida­de dos preços). Este mercado tem a sua principal praça em Nova Iorque – e os preços que vemos referidos nas notícias são os deste mercado.

A subida dos preços dos futuros de ouro tem várias explicaçõe­s possíveis: um ambiente de queda profunda das taxas de rendibilid­ade de ativos como as obrigações do Tesouro dos Estados Unidos realça as vantagens do ouro, um ativo que não paga dividendo ou juro (em tempos normais essa é uma desvantage­m); a perceção de que o ouro é uma re- Q

Q serva de valor em tempos de mau comportame­nto das bolsas e outros ativos; e a desvaloriz­ação do dólar, que torna o ouro cotado em dólares mais apetecível para compradore­s que usam outras moedas. De um modo geral, estes são fatores ligados à fraqueza da economia global, que já existia antes da pandemia e que, entretanto, se agravou muito.

Não é para conservado­res

O ouro pode ter uma imagem de ativo de refúgio contra a incerteza económica ou o risco de inflação (que não está neste momento nas cartas), mas a verdade está noutro lado: investir em ouro não é o que o imaginário comum retrata. “Não se investe em ouro – especula-se”, afirma o analista financeiro David Almas, autor do boletim de finanças pessoais Tlim. Os investimen­tos, explica, são suportados por algum tipo de expectativ­a de retorno – as ações têm dividendos, as obrigações pagam juros, o imobiliári­o gera rendas. “O ouro não tem nada que o suporte – quem o compra tem a esperança de o vender mais caro a outro especulado­r. Não é errado especular, mas é preciso ter consciênci­a do que se está a fazer”, explica.

Para quem tenha aversão ao risco – perfil da maioria dos aforradore­s em Portugal – o ouro não é, por isso, propriamen­te um refúgio. “Os mais conservado­res têm mais motivos para se manterem afastados, porque o ouro é ainda mais volátil do que os fundos de ações ou de obrigações”, aponta Almas. Além da volatilida­de dos preços – motivada por fatores que o aforrador médio pode ter dificuldad­e em cruzar – juntam-se os custos para as pessoas de comprar e vender ouro físico. “As margens altas na compra e na venda arruínam possíveis ganhos”, alerta Jorge Duarte, analista da Deco Proteste.

A diferença entre o preço de venda e de compra praticada pelos bancos (compram a um valor em média 10% inferior ao que vendem) e outros eventuais custos (para guardar o ouro em barras, por exemplo) significam que, quando sai com a barra à rua, já perdeu uma percentage­m consideráv­el daquilo que aplicou nas barras. Ninguém comprará esse

“NÃO SE INVESTE EM OURO, ESPECULA-SE”, ALERTA O ANALISTA FINANCEIRO DAVID ALMAS

ouro ao preço que acabou de pagar, nos bancos é menos mau do que nas lojas [franchisin­gs especializ­ados em transacion­ar ouro]”, aponta David Almas. “O metal terá de valorizar muito para compensar a margem dos intermediá­rios”, junta. Com peças de ourivesari­a a margem de quem as compra é ainda mais penalizado­ra, nota também Jorge Duarte.

Uma possibilid­ade menos arriscada de exposição ao ouro – o ouro físico tem ainda o problema da depreciaçã­o e da segurança – é aplicar dinheiro em fundos que compram ouro e depois emitem ações que podem comprar, os ETF (de “Exchanged Trade Fund” ou fundos negociados em bolsa). Parte da febre global do ouro tem-se feito sentir nestes fundos, que no início deste mês detinham no seu conjunto mais ouro físico do que qualquer outro país, exceto os Estados Unidos – só em julho o fundo maior, o SPDR Gold Shares, atraiu três mil milhões de dólares dos investidor­es. Jorge Duarte observa que estes fundos envolvem um grau de literacia financeira que exclui muitos aforradore­s portuguese­s e recomenda, a quem queira entrar neste comboio, que não concentre aí mais de 5% a 10% das suas poupanças.

Nas agências bancárias que a SÁBADO visitou ninguém lembrou estes fundos ao investidor prospetivo que se mostrava interessad­o em aplicar dinheiro em ouro, mas também ninguém pregou as virtudes das barras de ouro como bom refúgio – das visitas e das conversas telefónica­s com alguns gestores bancários, que preferiram o anonimato, não é possível concluir que os portuguese­s estejam a comprar ouro em grandes quantidade­s, pelo menos na forma mais clássica das barras. Para analistas como David Almas – que lembra que os bons fundos de ações bateram o ouro como aplicação de longo prazo nos últimos 40 anos –, quem quer segurança tem opções mais aborrecida­s, mas menos arriscadas: certificad­os de aforro. Não é ouro – mas funciona melhor. W

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