SÁBADO

A ALTURA DAS CRIANÇAS

- ÂNGELA MARQUES

Aainda não eram quatro da tarde e ele já andava em itálico. Naquela pastelaria com cara de café central, as mínis tinham mais saída do que o álcool-gel em março e nem arranjavam desculpas – sem tremoços ou amendoins à boleia, elas encaravam as broncas sozinhas. Sabendo disso, ele bebia-as umas atrás das outras para formar um exército. Pelo meio, o filósofo debitava filosofia e um ou outro conceito de marketing.

A conversa não era connosco nem para nós e isso, ao mesmo tempo que nos tirou a fome, deu-nos de comer à curiosidad­e. Mesmo que por linhas tortas, ele tinha um discurso às direitas. Olhando para um cartaz de gelados e um cardume de miúdos de volta dele, o nosso Ted Talks disse para o amigo – mais bold, mais virado para dentro depois de sete mínis: “Sabes porque é que os gelados para os miúdos estão sempre no fundo dos cartazes?” O tom de anedota fez o amigo reagir como se estivesse numa roulotte, de braço no balcão, à espera da solução do cubo de Rubik: “Porquê? Porquê?”

Se também ansiava pela resposta, eu ansiava mais por ter a certeza de que aquela premissa estava certa. Assim, naqueles segundos em que o filósofo de praia criava o suspense que o amigo pedira com o “Porquê? Porquê?”, eu fiz rewind no streaming da vida. Lembrei-me de caras do Pé.

Aquele gelado cor-de-rosa com formato de pé era a audácia em forma de leite, açúcar e corante. Senão vejamos: o Pé queria ser um sucesso de vendas e, para isso, tinha de convencer milhões de crianças a chuparem dedinhos de gelado. Como ser miúdo é, em grande parte do tempo, calar e comer, teriam de ser os pais a considerar aquela uma bela ideia – só que, no mundo de muitos adultos, os pés são quase sempre tabu.

Devaneava por aí quando a resposta surgiu: “É que essa é a única maneira de os gelados estarem à altura deles. Eles não veem o mundo dali para cima e assim só desejam o que têm à frente dos olhos.” Juro que o amigo ficou desformata­do. Eu só consegui ver o meu filósofo passar de itálico a sublinhado. É que ele estava certíssimo, do pé à cabeça. W

QUANDO O FILÓSOFO DE PRAIA CRIOU O SUSPENSE QUE O AMIGO PEDIRA COM O “PORQUÊ? PORQUÊ?” EU FIZ REWIND NO STREAMING DA VIDA

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