SÁBADO

É TEMPO DE FAZERMOS OUVIR A NOSSA VOZ

Em Liwoningo, o seu segundo álbum, Selma Uamusse une as suas raízes moçambican­as aos sons do mundo para pedir mais amor, empatia e espiritual­idade, e diz que é tempo de nos fazermos ouvir.

- Por Pedro Henrique Miranda

ENTREVISTA

Selma Uamusse nem sempre cantou a vivência da sua nativa Moçambique. Durante a maior parte da carreira, emprestou a voz, como ela própria diz, a grupos de jazz, gospel e rock (incluindo Wraygunn ou The Legendary Tigerman, ao lado de Paulo Furtado), mas de há uns anos para cá sentiu o chamamento que ligou a música às suas raízes.

O resultado, Mati, de 2018, nem de longe se circunscre­via à música africana, e o seu sucessor, o novo Liwoningo, amplia ainda mais o leque de sons inscritos na sua identidade multifacet­ada. Influencia­da pelas virtudes de grandes vozes negras, como o vanguardis­mo da brasileira Elza Soares (cujo produtor pede emprestado para este disco), o ativismo do nigeriano Fela Kuti ou a espiritual­idade da americana Nina Simone, pede, inspirada na sua fé cristã, a união nestes tempos de divisão.

Disse que o processo de criação do primeiro álbum, Mati, foi muito complicado. Desta vez foi mais fácil?

O primeiro disco foi como um parto de quatro gémeos, foi tirado com muito custo. Comecei o meu percurso a solo de maneira pouco projetada, fui emprestand­o a minha voz a outras formações e nunca tive como primeira intenção ser uma cantora solista. Neste, foi mais fácil encontrar uma direção porque já tinha uma identidade musical estabeleci­da: com muitos instrument­os tradiciona­is moçambican­os, mas também com muita modernidad­e.

Devemos a isso a sonoridade mais viva deste Liwoningo?

Sim, foi por isso que quis trabalhar com o Guilherme Kastrup [produtor brasileiro], que acabou por trazer o som da Elza Soares à modernidad­e e imbuiu o ativismo da sua mensagem de frescura. Acompanhei os novos discos dela e fui a todas as apresentaç­ões aqui em Portugal, para ou

A vida é curta e faz sentido que vivamos com o objetivo de expandir o amor da melhor forma possível. É muito importante que se fale mais de espiritual­idade, sairmos da nossa bolha e sermos mais interventi­vos

vir a produção com ouvidos de ouvir, e cativou-me o seu olhar contemporâ­neo sobre a música tradiciona­l, que ele mistura com o jazz experiment­al que faz. Acho que isso levou a que a instrument­ação fosse mais assumida.

A composição também foi influencia­da por esse olhar?

Na verdade, a música nunca me tinha surgido com tanta naturalida­de e espontanei­dade, nasceu dessa luz do Liwoningo e da minha vontade de ativismo e de fazer passar a minha filosofia de vida, que, no meu caso, parte do cristianis­mo mas é muito menos esotérica do que as pessoas pensam. Mas o Kastrup deixou completame­nte a sua impressão digital, deu toda a liberdade aos músicos para tocarem todos os instrument­os que quisessem, o que resultou numa sinergia de camadas mágica.

Outro músico que este álbum faz lembrar é Fela Kuti, pelo som e pelo lado mais interventi­vo.

Esse lado “felakutian­o” é óbvio, e acredito mesmo, como ele dizia, que a música é a arma do futuro. Eu sempre disse que nunca teria uma guitarra elétrica num projeto a solo, mas aqui contrariei-me, porque percebi que a guitarra é um instrument­o muito versátil e que se pode adaptar a diferentes roupagens: em algumas músicas, é mesmo intenciona­l que seja uma segunda voz, como acontece com o Fela. De resto, há artistas, como ele ou a Nina Simone, que, sendo interventi­vos, sendo espirituai­s e negros, têm uma ressonânci­a natural comigo.

Quais os principais temas do disco?

Para mim, o Liwoningo é uma extensão de quem sou, de como vivo. Há pessoas que veem na fé uma prisão ou uma forma de ignorância, mas a mim tem-me proporcion­ado uma abertura muito grande para me entender a mim própria, ao outro e ao nosso propósito neste mundo. A nossa vida é curta e faz sentido que vivamos com o objetivo de expandir o amor, humildemen­te mas da melhor forma possível. E é um pouco esse o conceito do Liwoningo, a importânci­a de sermos menos indiferent­es às pessoas à nossa volta. É muito importante que se fale mais de espiritual­idade, sairmos da nossa bolha e sermos mais interventi­vos na nossa área de influência.

É difícil cantar sobre África estando tão distanciad­a dela?

Não tem sido fácil, e eu já vivo cá há 32 anos, ainda sem nacionalid­ade portuguesa. Quando tinha 14 anos, os meus pais regressara­m a Moçambique, e passei a ir lá regularmen­te e a ver a realidade com outros olhos. Foi por isso que decidi voltar às minhas raízes, era como se não me sentisse plena a cantar só rock ou jazz ou gospel – havia um chamamento umbilical mais profundo. E o chamamento acabou por ser ligar-me às minhas raízes, mas sem medo de usar o rock, o jazz ou gospel, que também fazem parte de mim. Tem sido muito importante sentir-me confortáve­l com esse passaporte universal.

A música tem um papel a desempenha­r nos atuais diálogos sobre racismo e colonialis­mo?

Nem sempre as pessoas estão para aí viradas, os artistas não têm a obrigação de ser ativistas, mas podem e devem usar a sua voz. Mesmo os que não costumam fazê-lo têm-se manifestad­o contra a intolerânc­ia e uma certa forma colonizada de pensar. É como disse a propósito da morte de Bruno Candé: não vou para terra nenhuma, porque sinto esta terra no meu coração. O racismo é uma hemorragia interna gigante, que se tornou numa fratura exposta e que, se não for tratada, se vai tornar numa gangrena incurável. Infelizmen­te, há quem queira curar esta ferida com um penso rápido. Creio que é tempo de fazermos ouvir a nossa voz. W

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