O TEMPO EM QUE OS POLÍTICOS MOSTRAVAM AS SUAS FÉRIAS AO POVO
Cavaco a mostrar-se em São Tomé, Soares a revelar a casa, ministros e líderes na praia e a contar sem falsas vergonhas onde iam veranear: as férias bem à mostra para português ver e saber já foram moda.
Cavaco Silva chegou a ir a São Tomé uma semana em família, e deixou que uma revista do social o mostrasse. Nos anos 80 e 90, o calção e a praia eram para exibir
Numa primeira página do Expresso, sempre sob o sol de julho de 1998, via-se Cavaco Silva sentado à beira da piscina com a mulher; Durão Barroso de calções no que parecia o jardim da sua casa de férias, fitando sorridente a objetiva; Manuel Alegre de calções e cana de pesca, meio enfiado no mar, em pose e com um riso aberto; e Jorge Sampaio, a caminhar com a mulher na praia, os dois com o olhar amistoso assente no fotógrafo.
O texto a acompanhar as imagens do ex-primeiro-ministro, do líder da oposição, do histórico deputado e do Presidente da República não permitia dúvidas sobre o grau de consentimento dos próprios: fora total. Lia-se: “Cavaco Silva vai desfazer-se da mítica vivenda Mariani, em Montechoro (...). Foi o próprio ex-primeiro-ministro quem confirmou a notícia ao Expresso, na quarta-feira, depois de aceitar ser fotografado junto à piscina onde dará os últimos mergulhos nestas férias de Verão.” Manuel Alegre estava “à pesca na Foz do Arelho”. Durão encontrava-se de facto “numa casa de Moledo do Minho” e “o casal presidencial, que escolheu a mesma praia minhota, onde o repórter Luiz Carvalho os descobriu a passear”.
Eram outros tempos: não eram precisas teleobjetivas, e, conta um fotógrafo no ativo nesses tempos, como “não havia os meios técnicos de hoje, era preciso maior aproximação” para apanhar o alvo em condições. E os políticos, em regra, consentiam aberta ou tacitamente: “Ou já estava combinado, ou pedia-se, eles ajeitavam-se, uns assumiam, outros fingiam que não viam, mas deixavam...” Havia alguma cumplicidade, até porque sem telemóveis com câmara, nenhuma foto de um político “apanhado” por um cidadão chegava “por acaso” às redações. “Tornava as coisas muito mais corretas”, assegura o fotojornalista.
Mas havia mais do que a simples fotografia assumida da beira de piscina. Cavaco Silva, por exemplo, tido como rígido, chegou a fazer uma Q
TEMPOS DE CUMPLICIDADE: DURÃO BARROSO DEIXOU-SE FOTOGRAFAR EM MOLEDO, MANUEL ALEGRE NA FOZ DO ARELHO, SAMPAIO TAMBÉM EM MOLEDO
Q semana de férias em São Tomé, com a mulher e os dois filhos, em que foi acompanhado por uma equipa da Olá Semanário. O resultado surgiu em várias páginas da revista. E não foi sequer exceção, recorda o seu então assessor para a área da comunicação social, Fernando Lima: “Sim, organizámos isso, mas houve outras ocasiões em que se usaram as férias como pretexto. A Helena Sanches Osório fez-lhe uma entrevista para A Capital na vivenda Marani [o nome era esse, ficaria para a história como Mariani], houve um encontro com o Carlos Queiroz, a seguir à conquista do Mundial de sub-20 [em 1991] também lá, que saiu no Correio da Manhã... Isso era assumido como fazendo parte da relação normal com as pessoas”, enquadra.
O equivalente, nos dias de hoje, seria ter António Costa a passar uma semana em Cabo Verde com a família e com a Flash? Hoje, por norma e desde há vários anos, o gabinete do primeiro-ministro já nem revela oficial ou oficiosamente onde passará as férias (em Portugal será sempre apanhado por um telemóvel vizinho, mas essa é outra história) e o mesmo se passa com os gabinetes dos ministros, deste e já de governos anteriores. Ora, até aos anos 90 esses gabinetes contavam quando e para onde ia o senhor ministro, com quem e que livros ia levar.
O fim da abertura
“Isso de facto mudou. Um dos elementos que penso que contribuíram para isso foram as redes sociais, que criaram um medo de se ser exposto ao ridículo”, aponta Fernando Lima.
Vasco Ribeiro, professor e investigador em comunicação política da Universidade do Porto, explica a necessidade de exibição: “Numa primeira fase, houve uma certa necessidade de as figuras públicas mostrarem o espaço pessoal, mas de forma controlada e preparada. E faziam-no bem: tudo era montado e preparado. E era importante, porque quanto menos se sabe desse lado pessoal, mais espaço se deixa para boatos infundados e até disparatados.” Por exemplo, o recatadíssimo Ramalho Eanes viu surgirem “boatos que diziam
MINISTROS, O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, LÍDERES PARTIDÁRIOS, MOSTRAVAM-SE EM FÉRIAS, NA RECEÇÃO DO HOTEL OU NA PISCINA. MARCELO ERA SÓ UM ENTRE MUITOS
até que os filhos eram deficientes!”, recorda. É preciso “preencher também o espaço pessoal no imaginário coletivo.” Ou era.
Mário Soares foi dezenas (centenas?) de vezes fotografado em calções de banho a dar passeios no Vau. Podia ser só um acaso, bastava ir ao Vau, e ele lá estava. Mas não. Era uma atitude. Também ele mostrou a casa do Vau enquanto estava de férias (várias páginas de reportagem, capa da Olá Semanário), também ele foi “apanhado” (outra capa da mesma revista) a jogar matraquilhos no verão, com o ministro dos Negócios Estrangeiros, João de Deus Pinheiro – por sinal outro habitué das colunas de férias.
Havia poucos limites e nem saídas ao estrangeiro geravam maior modéstia, Em 1998, no tradicional artigo estival (à época, praticamente um clássico do jornalismo) sobre as
“HOUVE UMA NECESSIDADE DE AS FIGURAS PÚBLICAS MOSTRAREM O ESPAÇO PESSOAL”, DIZ O INVESTIGADOR VASCO RIBEIRO
férias dos políticos, o Expresso contava que António Costa (ministro) queria ir à Córsega, o primeiro-ministro António Guterres iria às Seychelles, Jorge Coelho a Cabo Verde, Vera Jardim a Moçambique, Manuel Maria Carrilho à Normandia, Pina Moura a Cuba, Luís Filipe Menezes ao México, António Capucho a Bilbau, Espanha.
Em algumas edições, o detalhe era tal que seria possível fazer um mapa de Portugal com um “onde está um político”. E não apenas com governantes, mas com deputados, líderes partidários e presidentes de câmara: Fernando Gomes (Porto) e Mário de Almeida (Vila do Conde) “desfilaram” em calção de banho num areal a norte. Em 1999, era possível saber que Ferro Rodrigues estava na Manta Rota, Carlos Carvalhas também, Octávio Teixeira ao lado, em Altura, Marçal Grilo na praia das Maçãs, Durão Barroso na Madeira, Marcelo Rebelo de Sousa na Quinta do Lago e Capoulas Santos também...
Mira Amaral, ex-ministro da Indústria de Cavaco Silva, explica assim a normalidade desses tempos: “Eu não mudei nada nas minhas férias, ia, como ministro, aos sítios onde ia antes de ser ministro e, portanto, nunca vi nenhum bicho de sete cabeças nessa questão das férias. Hoje, a pressão mediática é maior e a classe política também está, na minha opinião, mais desqualificada e esconde-se, porque os sítios onde vai não são aqueles a que ia antes. A rapaziada passou a ter medo que digam que vão aqui e ali...” E um colega do mesmo governo cavaquista, que pediu para não ser identificado, corrobora: “Fazia parte de mostrar que éramos pessoas normais. Tinha até alguma importância, mostrar essa normalidade do político. Mais do que naturalidade, acho que havia quase uma certa inocência nisso.”
Essa idade da inocência parece ter terminado. “A comunicação social caminhou no sentido de valorizar sobretudo as notícias negativas, o escândalo, a corrupção, e isso tem contribuído para afunilar a imagem dos políticos, que se foram protegendo e fechando num comportamento de não ostentação de riqueza, de maior recato”, descreve Vasco Ribeiro. Outros fatores podem ter ajudado ao retrocesso na exibição do calção de banho: “Tradicionalmente, os regimes parlamentares são menos propensos a uma grande pessoalização. E, por outro lado, a esquerda – Soares à parte – é mais recatada na exibição do poder.” A óbvia exceção à tendência de mais contenção “é o Presidente da República”. É tão banal ver Marcelo Rebelo de Sousa em calções que quase já não é notícia. Quase. Porque há um fator que pesa sempre, aponta Vasco Ribeiro, lembrando, a este propósito, o exemplo de Soares, um mestre no mostrar com propósito a vida pessoal: “Passa e recorda-se mais facilmente a ideia de um determinado lifestyle do político – onde vive, como vive, onde tem os filhos a estudar – do que as ideias profundas que tem sobre economia...” W
MIRA AMARAL: “HOJE A PRESSÃO MEDIÁTICA É MAIOR E A CLASSE POLÍTICA MAIS DESCLASSIFICADA E ESCONDE-SE”