Falámos com Vicente Alves do Ó, autor de Golpe de Sol, em estreia
Vicente Alves do Ó recorreu às próprias vivências para juntar, em Golpe de Sol, quatro personagens de fato de banho e com um “fantasma” comum. Falámos com o realizador.
“Sem paciência” para balanços, por estar “ocupado a viver a vida”, Vicente deu por si à beira dos 40 anos, a fazê-los com os amigos. Foi a inspiração para Golpe de Sol
“DEPOIS DE VER aquilo, andei eu e andámos todos a estudar aquelas empresas que vendem as casas modulares.” Vicente Alves do Ó refere-se às casas que viu para servirem de cenário a Golpe de Sol, o seu mais recente filme, que estreia esta semana nas salas portuguesas. “É a prima pobre de uma outra, que era de outra família. Mas disseram-me: ‘Vicente, peço imensa desculpa, mas para cinema não. Se você quiser vir fazer fotografias, publicidade, um anúncio, um dia, dois, pode ser. Um filme, não.’ Até percebo, a casa era inacreditável.”
A conversa sobre a casa de Golpe de Sol – e nem dá para imaginar um cenário melhor – nasce de um desejo de férias e de uma inveja do local onde as personagens passam um fim de semana que era para ser de descanso e se torna uma autoanálise sentimental pré-meia-idade.
Terminado em 2018, e após a passagem por alguns festivais e o adiamento devido à pandemia, Golpe de Sol chega na altura certa: embora demasiado perto da estreia da próxima obra do realizador – Amadeo, sobre o pintor Amadeo de Souza-Cardoso –, não se pode deixar de pensar em como calha bem no sentimento de pós-confinamento. “Agora sim, poderíamos vender isto como o filme do confinamento. Aqueles quatro, verão e incêndio ali à volta, na serra de Grândola”, resume Vicente Alves do Ó.
Quatro personagens estão numa casa com piscina – e perto da praia – no meio de um pinhal. Três homens (Ricardo Pereira, Nuno Pardal e Ricardo Barbosa) e uma mulher (Oceana Basílio). Além da amizade, une-os alguém chamado David, desaparecido há 10 anos e que retoma o contacto no início do filme a declarar que vai aparecer.
Golpe de Sol está à espera de David, à espera do passado e dos seus fantasmas. Será autobiográfico? Vicente responde: “É, no sentido de que era apenas um exercício de escrita. Por isso o Simão [Ricardo Barbosa] era eu, e não havia problemas nenhuns com isso, e aquelas pessoas eram todas baseadas no meu grupo de amigos, porque eu escrevi num verão em que não tinha nada
para fazer. Não tinha trabalho, estava em Lisboa, com pouco dinheiro, não havia férias, não havia nada. Por vezes, quando não tenho um objetivo claro, escrevo histórias, séries, ideias. Vou acumulando a minha arca com coisas.”
Vicente Alves do Ó estava a completar 40 anos e deu por si a fazer – involuntariamente e contra a sua vontade – um balanço existencial com os amigos: “Não tenho muita paciência para isso porque estou ocupado a viver a vida, mas lembro-me de que era na praia, ou na piscina de uma amiga, que tínhamos as conversas mais sérias. Na praia não, mas na piscina bebíamos muito vinho. Nos sítios de relax, descontração, diversão, tínhamos as conversas mais pesadas, onde estávamos mais expostos, em fato de banho. É engraçada, essa relação.”
David surge nessas conversas. David não é necessariamente uma pessoa, pode ser um assunto para resolver, uma ideia, uma ponta solta do passado, ou “o tal” amor que poderia ter sido. As pontas soltas ficam mais fáceis de encontrar com a idade. “Percebi que toda a gente tinha histórias para resolver. As pessoas não estavam todas resolvidas em relação aos seus passados. Sobretudo a nível emocional. Há uma parte que é muito pessoal, minha, sobre uma pessoa que telefonou e reapareceu cinco anos depois, a querer voltar, e havia outras pessoas que tinham tido experiências dessas também, umas tinham corrido pior e outras melhor. Era o ponto no qual eu podia universalizar o filme e dar uma coesão maior.”
Ao longo de 90 minutos, espera-se por ele, o David, enquanto os outros desvendam aos amigos – e a si próprios – passado, presente e futuro. Nem sempre o que contam é bonito, nem sempre o que contam é coerente com o que estão a viver: as personagens pensam muito no momento, embriagadas pelo fim de semana, pela casa, a companhia e o sol, uma das grandes mais-valias do filme: “Quando pensava na ideia, era tudo invernoso, fechado, com chuva. Mas porquê isso? Só sublinharia mais a tragédia. A realidade é mais interessante. Com sol, as pessoas estão de fato de banho, divertidas, mas a cabeça delas, os corações, não estão nesse mood.”
No final da conversa, depois de Vicente passar algum tempo a falar de si próprio, dos seus amigos e de como chegou a este filme, a pergunta tornou-se inevitável: já resolveu o seu David? “Já só me lembro das partes giras e boas. Não vale a pena pensar nas más, isso é para a novela. Na vida, guarda-se as partes boas e, quando encontras a pessoa, pensas só nessas. Mas aí tens de avançar mais uns 10 anos, acho. Creio que sim, eu resolvi o meu David.” W