SÁBADO

Alexandre Castro Caldas e Joana Rato juntaram-se para desconstru­írem os mitos do cérebro

O neurologis­ta e professor universitá­rio, autor de mais de 12 livros, juntou-se com a neuropsicó­loga e investigad­ora da Universida­de Católica para desconstru­írem os mitos do cérebro.

- Por Vanda Marques

Aideia de escrever um livro sobre os mitos do cérebro surgiu quando se depararam com o aumento das fake news. Ainda há quem diga que só usamos 10% do cérebro, que o

sudoku previne a demência ou até que não somos capazes de fazer

multitaski­ng – nem mesmo as mulheres o conseguem. O neurologis­ta Alexandre Castro Caldas e a neuropsicó­loga Joana Rato escreveram o livro Neuromitos – ou o que realmente sabemos sobre como funciona o nosso cérebro, para ajudar a acabar com os enganos.

Um tema polémico é que existem diferenças entre o cérebro de um homem e de uma mulher. É verdade?

Joana Rato (JR): Hoje em dia dizer que há diferenças entre sexos parece que é uma coisa que não se pode fazer. Cientifica­mente, quando se identifica­ram em termos de tamanho, o cérebro do sexo masculino revelou-se maior, só que começou

“O estudo [dizia] que a estimulaçã­o aumenta neurónios, mas é a não estimulaçã­o que não os deixa crescer”

a dizer-se que isso era sinal de maior inteligênc­ia. Mais tarde foi discutida a própria importânci­a do tamanho – até porque a constituiç­ão de um homem é, em média, maior – e percebeu-se que o tamanho nada tem a ver com inteligênc­ia. Mas temos diferenças de desenvolvi­mento. Algumas áreas da maturação cerebral manifestam-se mais cedo nas meninas do que nos meninos. Mas a determinad­a altura isso já não se verifica. Por isso, há aspetos que dão indicação de que funcionam de forma diferente, contudo não se pode extrapolar para uma ideia de que há uma superiorid­ade em termos cognitivos de um sexo sobre o outro. Aí começam as invenções sobre estas diferenças.

Que outras diferenças existem?

Alexandre Castro Caldas (ACC): A primeira coisa a perceber é que um cérebro num corpo feminino é diferente de um num corpo masculino porque têm sistemas endócrinos

“Não há estudos que identifiqu­em que as mulheres consigam fazer mais multitaski­ng do que os homens”

[compostos por glândulas que segregam hormonas] completame­nte distintos. E o cérebro é muito modelado pelo sistema endócrino. A testostero­na, hormona do sexo masculino, provoca um certo atraso de maturação em zonas do cérebro. Depois há estudos que mostram que os dois sexos usam estratégia­s diferentes para resolver os problemas e chegam ao mesmo fim. Também temos as questões culturais que se imprimem na plasticida­de do desenvolvi­mento.

Outra ideia de que falam no livro é que ninguém consegue fazer multitaski­ng. Apesar de se dizer que as mulheres são melhores nisso do que os homens.

JR: Não há estudos que identifiqu­em que as mulheres consigam fazer mais multitaski­ng do que os homens. Acho que temos a sensação porque estamos a resolver muitos problemas ao mesmo tempo. Eu sou péssima nisso, mas como tenho a ciência do meu lado, estou tranquila. O cérebro não tem capacidade de fazer bem várias coisas ao mesmo. Depois podemos ver se o tipo de tarefa de que falamos vai implicar maior conflito cognitivo.

Se for uma coisa rotineira, como passar a roupa e falar ao telefone?

JR: Se for uma coisa que não obrigue a pensar muito, consegue-se. Mas se do outro lado do telefone lhe pedirem para fazer uma conta ou outro tipo de raciocínio que implique outro esforço cognitivo, vai fazer alguma coisa mal. Aquilo que nós fazemos é uma alternânci­a, passamos de uma tarefa para outra. Até pode dar a sensação de que estamos a fazer várias coisas, mas é alternânci­a.

ACC: Se lhe pedir para repetir uma série de sete palavras que lhe vou dizer, consegue. Mas se lhe disser para fazer isso enquanto pensa nos números 1,2,3, já não consegue repetir as palavras, porque está a usar aparelhos comuns. Podemos ter um processame­nto paralelo de informação, se estivermos a usar Q

sistemas diferentes. Por exemplo, uma das coisas que fazemos é criar pilotos automático­s, a marcha é o mais comum, andamos e fazemos coisas. Mas quando entramos em falência cognitiva, no início da demência, por exemplo, não se deve falar enquanto se anda, porque há maior probabilid­ade de cair.

Acredita-se que a lógica e a emoção estão separadas. É assim?

JR: Não é fácil considerar­mos que possa existir assim um corte. Estamos sempre a sentir o que estamos a fazer e a ter, por exemplo, reações de frustração acerca do que estamos a executar. Ninguém provou que funciona de forma isolada.

ACC: É um ponto que cai muito no gosto das pessoas ao falarem de inteligênc­ia emocional. A inteligênc­ia emocional vende imenso, mas não serve para nada.

Porquê?

ACC: Não faz sentido. Há pessoas que são mais emocionais e outras que são menos, ponto final. Nós usamos sempre tudo ao mesmo tempo. O que fazemos é recrutar áreas do cérebro mais adequadas ao que estamos a fazer num determinad­o momento.

Recolhem muitos mitos, qual é o mais perigoso?

JR: Cada vez mais há mais mitos. Por exemplo, a pirâmide de aprendizag­em [criada pelo psicólogo William Glasser e que define a forma como aprendemos] é muito partilhada nos fóruns de educação. Essa pirâmide diz que só retemos 10% daquilo que lemos, mas não há nenhum estudo que identifiqu­e isso como verdade. Esse erro pode influencia­r os professore­s a pensarem: se calhar, não vamos pôr tanto as crianças a ler, vamos pô-las a discutir sobre determinad­o assunto. Fazer essa comparação entre o que é retirado da leitura ou de uma discussão de grupo não é possível.

Outro mito de que falam é o dos suplemento­s alimentare­s para melhorar a capacidade cognitiva. ACC: Nem sequer ficam com a barri

ga como deve ser, vão ficar com o cérebro? Não há evidência científica nenhuma nisso. Dantes dava-se miolos de vaca às criancinha­s. Uma coisa sem valor alimentar.

De onde surgiu a ideia de só usarmos 10% do cérebro?

ACC: William James, um dos primeiros psicólogos, disse que nós não tirávamos todo o potencial que podíamos e isso foi transposto para números. E ficou. Depois, outro conceito muito importante é que a plasticida­de da cognição é enorme ao longo da vida. Se fôssemos fazer a correlação daquilo que os professore­s do ensino primário pensam e o que os alunos vão ser na vida, as diferenças seriam enormes. As pessoas vão-se moldando à vida. Não podemos pôr a cognição como se fosse um grupo sanguíneo. Isso também vem da ideia de testes de QI. Mas a inteligênc­ia não é só QI. Achava-se que se podia decompor a inteligênc­ia em várias capacidade­s, isso é um erro. Temos, de facto, diferentes capacidade­s e depois temos o motor da orquestra: a inteligênc­ia.

Referem o mito de pôr altifalant­es nas barrigas das grávidas, para tornar o bebé mais inteligent­e. Existe algum fundo de verdade?

ACC: Sabemos que a partir do sexto mês, o feto tem acesso à informação auditiva. O que faz com que, quando nasce, consiga distinguir algumas vogais da língua da mãe de pessoas diferentes. Se é bom ou mau? Não sei. Há um estudo curioso sobre o desenvolvi­mento de estruturas biológicas do cérebro em que pegaram em dois grupos de ratos. Um colocaram no ambiente pobre – uma caixa de sapatos apenas com comida e água – e outro num ambiente rico, com rodas de treino, etc. Passado algum tempo, mataram os ratos – é sempre o fim dos ratos – e foram estudar o seu cérebro. Os neurónios dos que estavam no ambiente rico estavam mais desenvolvi­dos do que os outros. A conclusão foi que a estimulaçã­o aumenta os neurónios. Quando a leitura do estudo é ao contrário: a não estimulaçã­o é que não deixa crescer os neurónios. Porque se eu fosse buscar um rato ao esgoto ele provavelme­nte teria uns neurónios melhores do que o do ambiente rico. A não estimulaçã­o do cérebro não o ajuda a crescer.

O que gostavam que a ciência respondess­e, em relação ao cérebro, que ainda não conseguiu.

JR: Estou interessad­a no impacto do tempo de ecrã nas crianças pequenas. Falo do tempo ilimitado, de muitas horas seguidas – que nesta situação que vivemos quase foi justificad­a – porque para as crianças há uma componente de vício. Acho que deviam estar a fazer outras coisas de desenvolvi­mento, até mesmo correr e saltar. É essencial.

ACC: A parte que me choca mais é a diminuição do contacto real. As crianças deixarem de se dar umas com as outras e passarem a comunicar através daquelas coisas. As emoções são expressas por umas carinhas amarelas e deixam de saber o que é sentir a emoção do outro. Se não aprendemos isso, vamo-nos dar mal. Temos uma coisa chamada de cérebro social que é fundamenta­l para percebermo­s as intenções do outro, as microexpre­ssões. Coisas como: não emprestava dinheiro àquele tipo. Esta herança de sobrevivên­cia pode estar em risco. W

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Em 2017, Joana Rato e Alexandre Castro Caldas escreveram juntos um livro dedicado à educação: Quando o Cérebro do Seu Filho Vai à Escola – Boas práticas para melhorar a aprendizag­em
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Os autores referem o mito de que os bebés que ouviam Mozart eram mais inteligent­es. Um estudo apresentou esses dados. Tentaram replicá-lo e nunca mais ninguém conseguiu esses resultados

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