SÁBADO

As confissões e o segredo do homem que resgatou Carlos Ghosn

- Por Sara Capelo

Só foi necessário identifica­r as (muitas) falhas na segurança japonesa. Representa­r um cliente sem pulseira eletrónica. Ter uma mala demasiado grande para o raio-X do aeroporto. E encontrar uma companhia aérea que não faz perguntas.

Michael Taylor passou três das quatro estações do ano passado a arquitetar um dos mais desafiante­s planos da sua carreira: o resgate de Carlos Ghosn, em prisão domiciliár­ia em Tóquio e (aparenteme­nte) sob vigilância 24 horas por dia.

Aparenteme­nte porque, entre a primavera e o dia 29 de dezembro de 2019, quando a fuga para o Líbano se concretizo­u, o ex-membro das forças especiais norte-americanas acabaria por descobrir falhas na vigilância ao antigo patrão da Nissan, acusado de fraude fiscal. Não só não tinha pulseira eletrónica, como as imagens das câmaras colocadas sobre a porta da sua casa eram recolhidas uma vez por semana (às segundas, terças ou quartas). A fuga teria de ocorrer num dos restantes dias.

Com os passaporte­s brasileiro e libanês apreendido­s, e o nome em todos os jornais japoneses, Ghosn teria de voar incógnito para fora da ilha. Como? Numa caixa construída para o seu tamanho, mas que se parecia com as que transporta­m colunas de música. Era também necessário encontrar uma companhia aérea que não fizesse perguntas sobre o serviço. A equipa de especialis­tas em segurança e tecnologia de Taylor encontrou a turca MNG Jet, conhecida por ter retirado ouro da Venezuela, apesar das sanções impostas pelos EUA. Depois, foi necessário identifica­r um aeroporto com falhas na segurança: o Kansai, em Osaka (a menos de 2h30 de comboio de Tóquio) não tinha máquina de raio-X para caixas daquela dimensão. Por fim, tirar o ex-executivo da Nissan de casa seria (talvez) o mais fácil: ele tinha autorizaçã­o para almoçar num hotel próximo de casa. E assim fez.

Quando os japoneses se apercebera­m de que escapara, a chegada de Ghosn a Beirute, a 30 de dezembro, era já notícia nos media libaneses.

A Vanity Fair refere apenas a versão de Taylor de que não recebeu “a dime”, isto é, um tostão, por este serviço. Porquê?, perguntou-lhe a jornalista. O antigo membro das forças especiais citou o lema deste grupo: “De opresso liber” (libertar os oprimidos). Mas outros meios, como a

Forbes, têm contado uma história diferente para esta “fuga ao estilo de Hollywood”: o negócio existiu, mas ocorreu entre os filhos de ambos. Citando os documentos da acusação norte-americana, a revista refere que, de janeiro a maio deste ano, Anthony Ghosn transferiu entre 500 e 600 mil dólares (425,4 a 510,4 mil euros) em criptomoed­as para Peter Taylor. A esses, somam-se outros 862,5 mil dólares (733,8 mil euros) que Carlos Ghosn movimentou para uma conta da empresa de Peter Taylor ainda em outubro de 2019.

Peter também está detido desde maio no estado do Massachuse­tts. E, tal como o pai, está a tentar evitar o pedido de extradição feito pelo Japão (na semana passada, o tribunal negou-lhes uma fiança). Seria irónico: os Taylor seriam julgados pelo sistema judicial a que ajudaram Ghosn a escapar. Aliás, Michael Taylor contou à Vanity Fair que ficou em choque ao ler um relatório de uma comissão das Nações Unidas sobre tortura que denunciava um sistema “medieval”, em que os suspeitos podem ser detidos por longos períodos para interrogat­ório sem acusação ou advogado.

Isso confirmava a descrição feita pela mulher do ex-patrão da Nissan. Quando se encontrara­m na mansão dos Ghosn, em Beirute – estava Taylor ainda a decidir se aceitava a missão –, Carole contou-lhe que, no tempo em que esteve detido, o marido dormia sobre um colchão fino de tatâmi com as luzes na cela sempre acesas. Tinha direito a meia hora no exterior por dia. E os interrogat­órios

“SENTI QUE ELE ERA UM REFÉM. ESTAVA A SER TORTURADO”, CONTA TAYLOR, QUE TAMBÉM CUMPRIU 19 MESES

DIZ QUE NÃO RECEBEU UM TOSTÃO PELO PLANO. MAS ACUSAM-NO DE TER OBTIDO MAIS DE €1,1 MILHÕES

duravam oito horas. “Senti que ele era um refém. Estava a ser torturado. Criei empatia pelo tipo”, disse à Vanity Fair. “Se ele tivesse escapado da Coreia do Norte ou da China, a narrativa [quanto à fuga] teria sido completame­nte diferente”, disse ao site de veteranos Connecting Vets.

Empatia ou milhões de euros?

Taylor é o nome adotado ao padrasto, militar – e que seria um exemplo para ele. Nasceu como Michael Anderson no Arizona, em 1960, filho de um casal de indígenas Cherokee. Do grupo de 169 recrutas menores das forças especiais de 1978, só ele e mais dois terminaram o curso. E menos de uma década depois, já trabalhava no setor da segurança privada.

Segundo a lenda que acompanha Taylor – ou o Capitão América –, quando as agências secretas ou o departamen­to de Estado norte-americano não podiam de modo oficial ajudar reféns, referencia­vam-no. Para o Financial Times, a prova do “pedigree deste especialis­ta privado em segurança está em 2009, quando o The New York Times o contratou para resgatar o repórter David Rohde, capturado por talibãs no Afeganistã­o. O plano foi montado, mas o jornalista conseguiri­a fugir sozinho.

Dessa vez, diz Taylor, não cobrou nada. Mas por cada uma das “cerca de duas dezenas de operações do género” recebeu entre 20 mil e 2 milhões de dólares (de 16.987 a 1,7 milhões de euros, em preços correntes). Terá acontecido com uma mulher envolvida num casamento abusivo com um libanês. Taylor ajudou-a e aos três filhos. Fala árabe e o Líbano é um país que conhece bem desde os anos 80, quando apoiou as milícias cristãs na guerra civil. Ali conheceu a mulher, Lamia. E tem uma teia de relações com o Médio Oriente.

Era, por isso, natural que se lembrassem dele para resgatar Ghosn. Conta que aceitou por se rever na injustiça: também ele cumpriu 19 meses de prisão acusado de “ter usado informação confidenci­al” para obter um contrato de dezenas de milhões para dar formação a soldados afegãos. Diz-se inocente – tal como Ghosn é, acredita. W

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Michael Taylor, ex-forças especiais (à frente na foto), é conhecido por Capitão América. O outro homem é George Zayek, que o ajudou a preparar a fuga do antigo líder da Nissan
g Michael Taylor, ex-forças especiais (à frente na foto), é conhecido por Capitão América. O outro homem é George Zayek, que o ajudou a preparar a fuga do antigo líder da Nissan

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