SÁBADO

ONDE ESTAVA NO VERÃO QUENTE?

Ocupações, barricadas, armas em casa, exílio, pancadaria, tiros, um casamento, um vizinho chamado Marcelo. Os meses mais escaldante­s da democracia, por quem os viveu.

- Por Maria Henrique Espada

Helena Roseta evitou que Emídio Guerreiro aterrasse de paraquedas em Beja. Germano reuniu armas. Justino ocupou uma casa. Júdice fugiu a salto

ROSETA E MARCELO CONVENCERA­M O LÍDER A NÃO DESCER DE PARAQUEDAS NA PRAÇA DE TOUROS DE BEJA

Houve medo, inconsciên­cia, perigo e amizade. Dirigentes, militantes de base, à esquerda e à direita, mudaram alguma coisa mas tiveram as vidas alteradas até ao âmago, num período, o Verão Quente, de agitação, rumores de guerra civil, ocupações e golpes. Estas são algumas das suas histórias, de há 45 anos.

HELENA ROSETA

Estrela de comícios h Ser uma das estrelas da companhia na tournée permanente de comícios e sessões de esclarecim­ento, País fora, deu direito a situações estranhas: uma vez, no Sul, a oposição boicotou a sua intervençã­o. “E eu subi para uma mesa e continuei a falar. Mas eles pegaram na mesa, um de cada lado, e começaram a tentar fazer-me cair…” Tinha 27 anos e o incongruen­te acontecia a qualquer momento. Uma vez, no Algarve, a LUAR (Liga de Unidade e Ação Revolucion­ária) obrigou os pê-pê-dês a deixarem a mesa da sessão: Estes mudaram-se para a assistênci­a. “Ficámos a ouvir e como os da mesa às tantas deixaram de conseguir responder às perguntas das pessoas, chamaram-nos para voltar para a mesa.” As perguntas, numa aldeia algarvia, nada tinham de ideológico: “As pessoas queriam saber como se votava, e nós lá explicávam­os como era o boletim, os símbolos, como se punha a cruzinha… Um senhor concluiu, ‘então há uma cabine para os homens e outra para as mulheres?’”

Em Lisboa não era mais fácil, Sá Carneiro estava ausente por doença, o PPD arranjara um líder de recurso, Emídio Guerreiro, “um aventureir­o, com um certo romantismo revolucion­ário”, com ideias que era preciso fazer descer à terra, até literalmen­te. Helena Roseta e Marcelo Rebelo de Sousa eram os dois seus secretário­s-gerais adjuntos e quando um comício em Beja acabou com Marcelo e outros militantes em fuga pelos telhados, o líder teve esta ideia original para se refazer o comício barrado: desceriam em glória, de paraquedas, na praça de touros da cidade. “E éramos nós, os dois miúdos [Marcelo tinha 26 anos] a dizer-lhe que não, não era boa ideia.”

Mas era em Lisboa que, aponta, se passava o mais importante, na Assembleia Constituin­te, em que foi deputada. “Ainda hoje acho um milagre que se tenha feito a Constituiç­ão, e uma constituiç­ão que resistiu, no meio daquele caos.” As sessões acabavam às 2h, 3h da manhã, quando acabassem, e no PAOD (Período de Antes da Ordem do Dia) discutia-se a quente a catadupa de eventos diários: “Muitas vezes o presidente mandava evacuar as galerias ou encerrar os

trabalhos. E ficou muitas vezes registado em ata “gerou-se o pandemónio”. Ela própria viveu um desses momentos de pandemónio, e já o tinha varrido da memória. Recordou-o recentemen­te ao consultar papéis. Depois do cerco à Constituin­te por trabalhado­res da construção civil, a 12 de novembro (“também lá estava, passei lá a noite”), os deputados interrompe­ram os trabalhos uns dias. Os “do arco democrátic­o dirigiram-se a norte, havia a perceção de que poderia ser preciso reunir a Constituin­te noutro sítio se ali fosse impossível”. No regresso aos trabalhos em São Bento, coube-lhe a primeira intervençã­o. “Bem, lá fui falar… só me lembro que foi uma gritaria.” Nas atas da Assembleia Constituin­te dessa sessão de 18 de novembro, enquanto falava, estão registadas dezenas e dezenas de “agitação”, “manifestaç­ões”, “burburinho”, “aplausos”, “apupos”, “vozes de protesto”, “risos” e 21 apartes variados.

GERMANO DE SOUSA

Passagens para os Açores h Já militante do PS, recorda um “período de loucura total”, um verão “muito quente, mesmo”. Tão quente que a perspetiva de que o processo democrátic­o descambass­e para outra coisa parecia real. “Muita gente tinha vindo da guerra, furriéis milicianos como eu, e estavam no PS, no PPD, nisso não fazíamos distinção, estávamos do mesmo lado. Houve uma preparação para defendermo­s a liberdade se fosse caso disso. Éramos todos homens habituados a mexer em armas.” E as armas passaram-lhe por casa, as célebres G3 que Edmundo Pedro tinha negociado para segurança do PS. “Já prescreveu, já se pode contar. O Edmundo organizou a operação com oficiais do Grupo dos Nove.” Nunca foram usadas, não foi preciso, “felizmente”. Nem isso, nem o pequeno arsenal médico que foi juntando com outro colega, “medicament­os, sobretudo amostras médicas”, até gazes. “Não esperava contar isso, não é nada de que me orgulhe. Mas estava só a tentar ficar do lado certo.” Num mundo sem certezas sobre o dia seguinte, chegou a ter compradas passagens para a mulher e para a filha para os Açores, onde tem família.

Era uma vida de secretismo­s, de “mensageiro­s e telefonema­s, conversas, toda a informação era boca a boca”. À noite, quase todas as noites, conversas “até às 2h da manhã” com o bem informado (“melhor do que eu”) vizinho do lado, de quem se tornou amigo e que acabara de se mudar para a casa onde ainda hoje vive em Cascais: Marcelo Rebelo de Sousa. Que dirigia o Expresso, tinha responsabi­lidades no PSD e mesmo em casa mostrava o conhecido talento Q

GERMANO DE SOUSA AJUDOU A JUNTAR ARMAS E MEDICAMENT­OS PARA O CASO DE SER PRECISO “DEFENDER A LIBERDADE”

“AQUILO [A BARRICADA] ERA UMA FANTOCHADA, VIEMO-NOS EMBORA”, RECORDA DAVID JUSTINO

Q para fazer várias coisas ao mesmo tempo: “Escrevia, atendia o telefone e falava comigo.”

DAVID JUSTINO

Ocupa, desocupa hEstudante de Economia e colega de Ferro Rodrigues e Vieira da Silva, acompanhou-os politicame­nte no MES (Movimento de Esquerda Socialista), como militante de base, no núcleo de Oeiras. Ora, isso implicava o costume: colar cartazes e distribuir propaganda (“Íamos recolher à sede central na Av. D. Carlos, em Lisboa”), ir a manifestaç­ões, e também arranjar uma sede. Essa parte correu bastante mal. “Tentámos ocupar uma casa, que estava vazia, mas depois descobrimo­s que afinal era de um emigrante e, enfim, achámos melhor sair, desocupámo­s…” Para militante, o jovem de 22 anos mostrava pouca convicção revolucion­ária.

Na véspera da manifestaç­ão da Fonte Luminosa, a 19 de julho, o PCP e o MDP/CDE montaram uma barricada na marginal, com um caterpilla­r, para intercetar os eventuais manifestan­tes que fossem até à Alameda apoiar o PS de Mário Soares. Foi ver, com o pai, próximo do PCP, ex-preso da PIDE, mas só registaram uma certa vergonha alheia. “Revistavam as pessoas que vinham do jogo, no casino… Aquilo era uma fantochada, e até o meu pai concordou que era uma fantochada, fomo-nos embora.”

A desilusão final foi só em setembro, quando o MES “decidiu ir pela via marxista-leninista e do centralism­o democrátic­o e eu pensei, ‘ora que bela oportunida­de para me ir embora’”.

JOSÉ RIBEIRO E CASTRO

Quem tem medo compra um cão hQuando chegou o verão, já vinha calejado do inverno. A 11 de março, com Freitas do Amaral e Amaro da Costa ausentes em Londres em treinos para tempos de antena, a sede nacional foi assaltada e coube-lhe a ele (tinha 21 anos), com mais quatro elementos da direção, ir pedir clemência à coordenado­ra do MFA. Com o golpe derrotado da direita, Sanches Osório fugira com Spínola para Espanha. Ora Sanches Osório era também o líder do PDC, parceiro de coligação do CDS nas listas para as eleições para a Constituin­te marcadas para o início de abril – e que seriam adiadas para 25 depois do golpe. O ambiente era tenso: “Fomos lá garantir que não tínhamos nada a ver com o golpe. Vem o [Franco] Charais a dizer, ‘está ali um gajo a pedir a pena de morte’... Mas enfim, deram-nos três dias para fazer novas listas sem o PDC.” Quando o verão aqueceu, já Rui Pena, dirigente do CDS, tinha sido preso e submetido a simulação de fuzilament­o no quartel dos Ralis, já o mesmo tinha acontecido a três elementos da Juventude Centrista.

Dia 19 de julho, esteve na Fonte Luminosa. A certa altura informaram no palco que havia problemas na Portela de Sacavém, junto aos Ralis, era preciso ir ajudar os camaradas acossados. “Fui também, quando lá chegámos, uma confusão, até tiroteio houve, e não deviam ser balas de borracha… mas não apanhei. Enfim, volta e meia havia pancadaria, mas fazia parte.” Não sentiu medo. “Medo? Sabe, eu tinha 21 anos. Se tivéssemos medo comprávamo­s um cão.” Mas casou nessa altura com a primeira mulher, e não inteiramen­te por acaso: “Se tivéssemos de ir embora, íamos juntos, já casados, fazer a nossa vida. Podia acontecer. Chegou a parecer provável.”

JOSÉ MIGUEL JÚDICE

E rebentar uma ponte? h Quem saiu mesmo foi José Miguel Júdice. No princípio de setembro, “e apesar de não estar proibido de sair do País, achei imprudente apresentar-me num posto fronteiriç­o com o meu passaporte”. Era militante do MDLP (Movimento Democrátic­o de Libertação de Portugal, formado em maio e liderado por Spínola). “Vi a revolução a acelerar, tinha dois filhos, tinha de lhes dar de comer, renda para pagar, tinha sido saneado do ensino, deixei de receber… mas eu tenho uma notável aceitação da vida, acho que me aguentei e tive sorte. Vi pessoas ao meu lado a desfazerem-se psicologic­amente.”

Ia destinado ao Brasil, levava cartas de recomendaç­ão, mas acabou por ficar em Madrid três meses, até ao 25 de novembro – e também regressou a salto para não ter de explicar a ausência do carimbo de saída. Ficou num quarto, com a mulher e dois filhos, numa residência religiosa, da ordem de Santa Zi

ta, a fazer estudos políticos para o MDLP, em que militava. O pedido mais exótico a que teve de responder foi para avaliar se deviam rebentar a ponte da Madalena, na região de Leiria “Porque assim os tanques não passavam do Sul para o Norte, se o País se dividisse. Lá dei o parecer de que aquilo não fazia sentido nem era oportuno.” Terá resultado, a ponte manteve-se intacta. E também elaborou um programa de governo: “Tinha 25 ou 26 anos, mas achava que sabia muita coisa. Mas lendo outros, também não eram melhores.”

MÁRIO TOMÉ

Tudo era política h”Em determinad­as unidades [da Polícia Militar], o nosso trabalho militar era muito político. Com a desmobiliz­ação das forças de segurança, da PSP, da GNR, a PM acudia a todas as turbulenci­azinhas em Lisboa, discussões, casos de droga... Não seria sempre bem feito, mas não era essa a nossa missão”, conta Mário Tomé. A PM passou a fazer parte “do fervilhar da cidade, de apoiar os movimentos populares, as ocupações... era muito político”. Mas não andou só na rua. Foi um dos autores do documento do COPCON (Comando Operaciona­l do Continente, com Otelo Saraiva de Carvalho à frente), de resposta ao Documento dos Nove, a ala moderada do MFA. “Era precisa uma democracia com organizaçõ­es populares de base, ainda é, para fazer frente ao imperialis­mo” Esteve em muitos momentos marcantes: “Na grande manifestaç­ão promovida pelo COPCON, a 20 de agosto, a maior de todas, na da “fumaça” [numa manifestaç­ão de apoio ao governo, explode um petardo e o primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo, garante que é “só fumaça”], na Torrebela, quando quiseram despejar o pessoal que fizera aquela ocupação magnífica, a PM teve um papel. Tivemos lutas terríveis.” Quando a Associação dos Deficiente­s das Forças Armadas cercou o governo, a 28 de setembro, “fomos alimentá-los, ainda hoje eles se lembram de mim por isso”. Não alinha na visão de que houve excessos: “O que é um excesso revolucion­ário? Ocupar terras na reforma agrária é um excesso? Excesso eram as bombas, essa escumalha.” W

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