SÁBADO

EDGAR: DO BENFICA AO REAL MADRID

Foi uma das maiores promessas do Benfica nos anos 90, esteve nove épocas em Espanha e brilhou no Málaga. Mas acabou a carreira cedo, desiludido com o futebol – hoje, a única ligação ao desporto é a paixão pelas águias e pela F1.

- Por Pedro Ponte

Antiga promessa das águias lembra o percurso de vida, da fuga à guerra em Angola ao sucesso nos espanhóis do Málaga e à paixão pela F1

Apoucos dias de ir de férias com a família, para o Algarve, Edgar Pacheco, de 43 anos, esteve duas horas à conversa com a SÁBADO no jardim em frente à sua casa, nos arredores de Lisboa. Tempo para recordar muitas histórias, desde a guerra em Angola, onde nasceu, à chegada ao Benfica, com 12 anos, acompanhad­o por um dos seus 13 irmãos. Licenciado em Gestão de Organizaçõ­es Desportiva­s, agora trabalha para o Estado. Mas ainda espera regressar ao futebol.

Tem andado desapareci­do do futebol. O que faz atualmente?

Quando acabei a carreira, em 2009, entrei na faculdade com o objetivo de tirar uma licenciatu­ra – queria ter uma base para o futuro. Licenciei-me em Gestão de Organizaçõ­es Desportiva­s, na Universida­de Lusíada, e fui trabalhar para Angola, para o Benfica de Luanda. Acabou por não correr muito bem, devido à crise, voltei para Lisboa e agora trabalho numa empresa do Estado, a eSPap, na área financeira.

Acabou por se afastar do futebol.

Quando acabei a licenciatu­ra fui para Luanda para continuar ligado ao futebol, mas com a crise tive de voltar para Portugal. Tentei trabalhar na minha área e ainda bati a algumas portas, mas o futebol fugiu de mim. Continuo atento, a seguir o Benfica, principalm­ente, e os principais campeonato­s europeus. Naquela altura, as portas fecharam-se e fiquei desiludido.

Ainda tem essa vontade de trabalhar no futebol?

Claro, porque estudei para ajudar o futebol. Ainda sou jovem e se surgir uma boa oportunida­de, um bom projeto, terei todo o gosto.

Nasceu em Angola?

Sim, no Kwanza Sul, em Calulo. As pessoas conhecem mais a zona por Libolo, tem lá uma grande equipa, o Recreativo. Foi complicado crescer lá, por causa da guerra. A casa dos meus pais foi queimada e tiveram de começar do zero. O meu pai tinha uma padaria e a minha mãe era doméstica, tinham tudo organizado e podiam desfrutar da vida. Até costumavam ir de férias para a Europa. Depois dessa situação fomos para Luanda. Vivíamos numa casa muito mais pequena, só com dois quartos. E éramos muitos... Essas dificuldad­es fortalecer­am-nos e tornámo-nos mais unidos. Vivi lá até ir para o Benfica, com 12 anos.

Os seus pais vieram consigo para Portugal?

Eu vim sozinho, mas tinha estado cá de férias com os meus pais e com um dos meus irmãos. Tenho 13, mas do meu pai e da minha mãe somos oito.

E como é que foi para o Benfica?

Fui com o meu irmão fazer um teste. Lembro-me de que o Gil Gomes estava connosco. Cresceu com os meus irmãos em Luanda e jogou com um deles no 1º de Agosto. Felizmente, o míster Bastos Lopes e o professor Rui Oliveira gostaram de mim e comecei aí a minha aventura no futebol.

E tornou-se benfiquist­a...

“Sofri uma lesão no joelho. Foi uma complicaçã­o porque estava quase a ir para o Barcelona”

Eu já gostava do Benfica. Quando era criança, em Angola, assisti com o meu pai pela televisão às finais da Taça dos Campeões Europeus contra o PSV Eindhoven e o AC Milan. Ele era benfiquist­a e via os jogos todos.

Como foi a sua carreira?

Tive uma carreira muito boa em Espanha, mas sofri uma lesão no joelho quando estava no auge, depois de ter ido à seleção, e passei quase um ano sem jogar. Foi difícil, mas as coisas foram melhorando. Essa lesão foi uma complicaçã­o porque estava quase a ir para o Barcelona. A força que os meus pais e os meus irmãos me deram fez com que esse problema não me mandasse abaixo. E o nascimento do meu filho deixou

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Q -me tão feliz que o resto acabou por ser secundário.

Antes ainda voltou a Portugal.

Sim, tinha muita vontade de regressar e acabei por ir para o Boavista. Adorei viver no Porto, mas o clube não estava bem. Não recebi nada nessa altura e acabei por ir para o Chipre, mas foi igual, com condições muito más e novamente sem receber. Ainda tive propostas da China, mas não era como agora. E pensei que se fosse estaria a perder mais um ano em que poderia estar a estudar.

Como foi a sua chegada à equipa principal do Benfica?

Cheguei aos seniores com 17 anos, mas no ano anterior já treinava perto da equipa principal e conhecia os jogadores. Tudo começou com a finalíssim­a da Supertaça, em 1995. Estava nos juniores e o Nené escolheu-me para ir à equipa principal, para ser opção para o Artur Jorge. E fui para Paris. Pensava que ia fazer número, mas durante o jogo o míster mandou-me aquecer, entrei e até estive bem. Foi um sonho. Depois desse jogo, o Artur Jorge mandou-me de férias porque já não ia voltar para os juniores, mas eu não acreditava. No dia seguinte fui treinar aos juniores e mandaram-me logo embora. Fui para Angola de férias. O Artur Jorge gostava muito de mim, ao contrário do Paulo Autuori, que dizia que era muito jovem e que tinha de ser emprestado. Entretanto, entrou o Manuel José e perguntou logo por mim! Comecei a jogar mais com ele, era mais uma oportunida­de que tinha de agarrar.

“Vale e Azevedo prometia coisas e fazia-nos felizes, mas era tudo mentira”

E foi para o Real Madrid.

O Graeme Souness queria que eu jogasse, mas fui afastado da equipa por gente de cima. O presidente era o Vale e Azevedo e o clube estava numa fase muito má. A partir de 1993 foram anos muito complicado­s. Havia ordenados em atraso, o clube era desorganiz­ado… Com Manuel Damásio era diferente. Vale e Azevedo prometia coisas e fazia-nos felizes, mas era tudo mentira. O tempo deu-nos razão... Havia jogadores que chegavam e ganhavam milhares e quem estava lá não recebia. Eram negócios muito mal feitos e ainda bem que o Benfica foi resgatado. Aquela direção quase rebentou com o clube.

Mas quando aparece o Real Madrid é impossível recusar...

Sim, foi muito bom em termos financeiro­s porque deu para ajudar a família. É o melhor clube do mundo. Joguei pouco tempo, mas tive a minha camisola, estive mesmo lá. Acompanhei o Mundial 98 pela televisão, a ver alguns dos meus ídolos, e pouco tempo depois estava com o Karembeu, o Suker, o Mijatovic, o Raúl... Não sabia se havia de treinar com eles ou pedir-lhes autógrafos. A melhor parte é que eram todos muito humildes. Dava-me muito bem com o Seedorf porque a mulher dele era brasileira, mas também com o Karembeu, que era o meu colega de quarto. Fazíamos tantas brincadeir­as no hotel, parecia que estávamos na escola.

Lamenta que não tenha durado muito...

Conquistei o meu lugar no Real Madrid na pré-época com o Guus Hiddink. Eu e o Eto’o éramos os mais novos e conseguimo­s um lugar nos 25 eleitos para a Liga dos Campeões. Às vezes era relegado para a bancada, depois de ter sido convocado, mas já ficava contente por estar lá. Depois fui para o Málaga por empréstimo e fiz uma segunda metade da época muito boa. Subimos de divisão, voltei para o Real Madrid para fazer a pré-época, mas o Málaga quis ficar comigo em definitivo. Também tive azar porque o Hiddink gostava de mim, mas saiu para dar lugar ao Toshack, que não me conhecia.

No Málaga, teve uma lesão grave.

Sim, e estava quase a assinar pelo Barcelona. Foi num jogo contra o Deportivo, em março de 2000. Foi uma entrada dura do Naybet, mas foi sem querer. Foram à vida o ligamento cruzado e o menisco. Só ganhei o meu lugar em definitivo no Málaga quando estava no último ano de contrato, depois de ter vindo do empréstimo ao Getafe. Comecei a jogar e fiz logo um grande golo de pontapé de bicicleta contra o Real Madrid.

Foi um golo especial?

Fiquei triste, porque gostava do Real Madrid, mas se soubesse até tinha marcado outro porque, entretanto, o Casillas foi para o FC Porto. Marquei esse golo e não saí mais da equipa. Vejo-o muitas vezes, até porque tenho o jogo gravado. No final, o Figo e o Carlos Queiroz vieram falar comigo. O Figo falou mesmo em falta de respeito, mas a brincar, claro. O jogo estava 2-0 para o Real e eu reduzi. Podíamos ter marcado mais, eu e o Duda tivemos oportunida­des, até que

o Beckham pegou na bola e marcou de livre. O guarda-redes nem a viu.

Acabou a carreira porque estava farto das confusões do futebol?

Sim, das mentiras, disso tudo... Tomei a decisão certa porque fui estudar mais cedo e não me atrasei mais nesse objetivo. Tenho muitas saudades do convívio no balneário, mas ainda jogo com os meus amigos e dá para recordar. O futebol desiludiu-me.

Olhando para a carreira que teve, valeu a pena?

Sim, porque, acima de tudo, consegui ajudar a minha família. Era o meu grande objetivo e estou muito feliz por isso. Consegui jogar nos dois melhores clubes do mundo, Benfica e Real Madrid, e isso ninguém me tira. E consegui jogar na seleção.

Além do futebol, gosta de algum outro desporto?

Gosto muito de desportos motorizado­s, de Fórmula 1 e MotoGP. Sou do tempo do Ayrton Senna! Nunca consegui ir ver corridas ao Estoril porque sempre que calhava lá alguma estava a jogar. Mas lembro-me do dia em que o Senna morreu. Estava num Europeu sub-16 na Irlanda e fartei-me de chorar. Comecei a ver a corrida, mas depois fomos almoçar. Quando se deu o acidente estava à mesa, falaram disso e fiquei rebentado...

Como começou essa paixão?

Em Angola, o meu irmão mais velho já gostava muito de motas, e via muitas corridas. E eu também comecei a ver. Sempre fui fã da McLaren por causa do Senna, mas depois apareceu o Hamilton, o mulato, e, para mim, é o Senna renascido. Sofro a ver as corridas. A minha mulher diz que há duas doenças lá em casa: Benfica e Fórmula 1. Às vezes temos almoços de aniversári­o que coincidem com as corridas e eu só apareço depois porque tenho de ver pela televisão. Hoje em dia já dá para assistir nos telemóveis, mas se não conseguir ver fico doente. Até vejo os treinos livres.

Mas também gosta de MotoGP?

Sim, adoro o Valentino Rossi. Quando eu jogava ele estava nas 125 cc e foi subindo. O campeonato agora é mais desequilib­rado, mas o Rossi continua lá e está a divertir-se.

Continua a seguir o Benfica?

Do Benfica sigo tudo. Voleibol, hóquei em patins, basquetebo­l... Eu vivi no centro de estágio, aprendi a ver essas modalidade­s e percebo de tudo. Sei o nome de todos os jogadores e sofro a ver os jogos.

Nestes anos todos, teve sempre a companhia da sua mulher?

Sim, ela é angolana mas conheci-a cá em Portugal. Tem sido um apoio importante. Tivemos altos e baixos, claro, mas trabalhamo­s e temos as coisas que conquistám­os. Ela entrou na faculdade no Porto, quando eu estava no Boavista, e depois entrei eu. Incentivou-me a isso porque sabia que eu gostava de estudar.

O seu filho, Edgar, joga futebol. Dá-lhe conselhos?

Ele joga muito bem, está no Belenenses SAD. Também fui futebolist­a, mas quero que ele conquiste as coisas dele. Posso dar um ou outro empurrão, mas quero que o meu filho seja ele próprio dentro do campo. Espero que continue a ser humilde e que conquiste as pessoas a jogar.

E a sua filha, que profissão é que ela quer seguir?

A Meline é muito inteligent­e. Já pensou em ser veterinári­a e agora quer ser médica-legista! Está a chegar à fase em que terá de decidir. W

“No dia em que o Senna morreu estava num Europeu sub-16 e fartei-me de chorar”

“A minha mulher diz que há duas doenças lá em casa: Benfica e Fórmula 1. Sofro a ver as corridas”

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Edgar fotografad­o para a SÁBADO, em frente à sua casa, com as camisolas do Málaga e do Benfica
1 Edgar fotografad­o para a SÁBADO, em frente à sua casa, com as camisolas do Málaga e do Benfica
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