SÁBADO

Mário “Nicha” Cabral (1934-2020)

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O primeiro português a correr na Fórmula 1 foi também prodigioso violinista, ginasta promissor e um notório bon vivant. Morreu na passada segunda, aos 86 anos

Oprimeiro grande piloto português poderia, em boa verdade, ter seguido uma série de outros percursos profission­ais. Enquanto jovem, destacou-se a olhos vistos numa série deles, mas a vida acabou sempre por encaminhá-lo para as corridas – paixão conturbada, fonte de quase tantos dissabores quanto alegrias na sua relativame­nte curta, mas brilhante carreira. Constantes, ainda assim, foram a sua alegria, intrepidez e hedonismo, valores que cultivou até aos últimos dias: Nicha Cabral, o nosso primeiro piloto de Fórmula 1, morreu esta segunda-feira, aos 86 anos, após doença prolongada.

Mário Manuel Veloso de Araújo Cabral nasceu a 15 de janeiro de 1934, na Cedofeita, Porto, o mais novo de três filhos de Diogo Cabral e Cecília Araújo, donos de uma fábrica de fiação. Com uma infância marcada por privações derivadas da II Guerra Mundial (apesar da neutralida­de portuguesa), foi com os irmãos para Lisboa frequentar o ensino primário e básico, em que obteve maus resultados. Na época, estava longe de pensar ser corredor profission­al, ainda que tivesse aprendido a conduzir aos 12 anos, no carro de serviço da fábrica familiar, um Fiat 1100. Interessav­a-se mais pelo violino, instrument­o em que revelava prodigioso talento na infância. Até aos 18 anos, destacou-se ainda na ginástica de alta competição, chegando mesmo a ser selecionad­o para os Jogos Olímpicos de Helsínquia, em 1952, quando uma lesão no pé esquerdo levou à sua substituiç­ão. “Foi um dos grandes desgostos da minha vida”, admitiria mais tarde – “por isso virei-me para os automóveis”.

FREQUENTOU A ALTA SOCIEDADE, PRIVOU COM ATORES E MÚSICOS E CULTIVOU A VIVÊNCIA BOÉMIA

A alta velocidade

Profission­alizando-se em 1955, nos ralis, correu, entre 1957 e 1965, em países como França, Alemanha, Inglaterra, Itália ou Brasil, estabelece­ndo, em simultâneo, uma reputação como bon vivant e sex symbol nos elevados círculos do automobili­smo. Contava que chegaram a confundi-lo com Marlon Brando em Paris, numa das muitas noites ébrias em que costumava deitar-se só às 6h da manhã, frequentan­do os mais exclusivos clubes e privando com a alta sociedade do mundo do espetáculo, incluindo Brigitte Bardot, o ator francês Pierre Clémenti (com quem travou duradoura amizade e romance passageiro) e o músico Johnny Hallyday.

A sua estreia na Fórmula 1 deu-se no Mundial de 1959, em Monsanto – a única das quatro provas que fez pela competição que conseguiu acabar, ficando na 10ª posição. Em 1965, com 31 anos e acabado de assinar contrato com a Brabham Racing, sofreu o acidente mais grave da sua carreira no Grande Prémio de Rouen, em França, que o deixou com 27 fraturas, e o afastou das corridas por três anos. Depois disso, “Fórmula 1 nunca mais”.

Com o fim da carreira de piloto, dedicou-se à venda de obras de arte – mais uma área em que revelou admirável proeza. Já no fim da vida, admitia: “Hoje sou muito mais homossexua­l do que quando tinha 20 anos”. E, das incontávei­s relações que teve ao longo da vida – com pescadores portuguese­s, atores franceses e um soldado guineense no Ultramar –, sumariza: “Normalment­e os meus romances não eram com gays, convertia-os.” W

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LUIS GRAÑENA

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