Corpo de sonho
O MEU SONHO ERA TER
um corpo de sonho. Não no sentido literal – para isso, necessitaria de quatro milénios de ginásio, três centenas de vídeos de flexibilidade da Chalene Johnson e duas dezenas de consultas com a Iara Rodrigues (mais a genética de Mark Wahlberg). Precisava apenas de uma chance na imprensa, uma hipótese simbólica, uma janelazinha de oportunidade: abrir o jornal da moda e, voilá: na praia, “Pedro Marta Santos com um corpo de sonho”.
O mais próximo que estive do mirífico perfil de Adónis foi quando outra Santos, a Andreia – não somos parentes –, segunda nutricionista que me poderia guiar ao Anapurna da tonificação, surgiu “com curvas do outro mundo” no areal por cortesia de um magazine online. Qual será o motivo para os homens jamais terem direito a ser classificados como senhorios de um corpo lúbrico, ou como mostruários de curvas dignas das elipses de galáxias distantes? Este desabrido sexismo apenas concede, num dia de extrema boa disposição das revistas da especialidade, o epíteto de “em grande forma” ao six pack de Cristiano Ronaldo ou um timidíssimo “corpo bem cuidado” ao pontual actor de novela que corre 30 quilómetros por dia e pratica full contact (é louco e deveria ser internado compulsivamente, mas isso é outra conversa). Será que a autoestima dos redactores responsáveis pelos comentários a moças em trajes estivais não lhes permite classificar da mesma forma rapazes e raparigas? Anseio pelo dia em que um jornalista ruminante, de barriga babosa e ternas dioptrias, lance às urtigas o seu pânico homossexual e desate a classificar os glúteos “de sonho” de Paulo Pires e os quadris “do outro mundo” de Duarte Pacheco, colocando-os nas manchetes e parangonas ao lado do dorso de Cláudia Vieira ou do umbigo de Margarida Corceiro. Converta-se a equipa pusilânime dos diários desportivos em milícias de ougadas freelancers. Refresquem-se os tabloides com dúzias de seguidoras das Insta stories de Lourenço Ortigão. Para quê tanta cancel culture das hipérboles, tamanha invertida misoginia dos pleonasmos, este body shaming das sinédoques? Editores da Flash, da VIP e da Nova Gente: tenham coragem antes que o Verão termine e publiquem a foto ao lado deste texto com a legenda “Blazer de sonho sobre omoplatas do outro mundo”.
(este texto foi escrito sob o efeito de raios solares no vidro de uma tequila sunrise; a sobriedade regressa em Setembro) W