SÁBADO

O HOMEM SIMPLES

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le era a festa da aldeia, da barriga proeminent­e ao cabelo suado, além da pressa de quem tem onde estar mas sabe demorar-se onde vale a pena. Aos sábados lavava a mota, aos domingos a 4L. Tinha tempo para visitar os sogros a quem nunca trataria como ex e para cumpriment­ar os vizinhos deles como se fossem seus.

Só o víamos no verão, quando não andava de camião pelas estradas de uma Europa de que falava com propriedad­e, mesmo se só lhe conhecesse os arrabaldes. Era um homem do mundo quando falava da figueira que tinha à porta de casa, mas estava longe de ser um poeta – era perito em atropelos à língua e tinha a graça de um humorista falhado. Em tudo, porém, era honesto.

Não estranhámo­s, por isso, que naquele dia em que os noticiário­s tinham prometido um eclipse ele aparecesse. O que se seguiu, contudo, quase nos fez ver estrelas. “Querem vir ver daqui?”, perguntou, praticamen­te em segredo.

Atravessan­do o quintal, um daqueles quintais de que alguém desistiu há três décadas, em que as plantas vivem dentro das suas possibilid­ades (ou seja, em velhos frascos de tinta) e os gatos correm como se tivessem os pulmões de cavalos bravos, encontrámo-lo: aquele homem estava curvado sobre o óculo de um telescópio.

O eclipse tem jpelo menos dois anos, mas a memória que guardamos dele – e que recordámos no último fim de semana – é mais nítida do que um filme em HD. Aquele foi o dia em que, no meio da aldeia, numa casa decorada com redes mosquiteir­as e cuja entrada podia ser a frente, o lado ou as traseiras porque tudo parecia uma garagem, furámos a lógica e tivemos o nosso próprio observatór­io astronómic­o.

O insólito daquilo tudo, reconhecem­os agora, esteve mais do nosso lado que do dele. Quem disse que o amor pelas motas, uma vida de estações de serviço e um repertório de histórias insufladas pela vaidade dos pequenos triunfos não pode conviver com uma curiosidad­e por corpos celestes? Nós dissemos, antes de ficarmos com cara de Lua cheia. W

SÓ O VÍAMOS NO VERÃO, QUANDO NÃO ANDAVA DE CAMIÃO PELAS ESTRADAS DA EUROPA DE QUE CONHECIA APENAS OS ARRABALDES

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ÂNGELA MARQUES

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