Contas de mercearia
O TIRANETE DA BIELORRÚSSIA
discursa em público para acalmar os ânimos. Os ânimos não se acalmam e o povo desata a vaiá-lo. A última vez que assisti a isto foi no distante Natal de 1989, quando o encantador Nicolae Ceausescu discursava em Bucareste e os romenos, escravizados pelo regime, tiveram uma reacção igual.
No caso da Roménia, houve fuzilamento a seguir. Do casal Ceausescu. Duvido de que o mesmo se passe na Bielorrússia: em 1989, era Gorbachev, e não Putin, quem estava no Kremlin. Mas é interessante concluir que, em 1989 ou em 2020, o nosso PCP tem um faro imbatível para apoiar o psicopata de serviço.
Isto, pelos vistos, não perturba o pardieiro. E será, para alguns espíritos, sinal de “coerência”. São estes espíritos, convém lembrar, que nos aparecem diariamente a dar lições de moral sobre a democracia (que abominam) e a tolerância (que nunca praticaram). Isto percebe-se?
Percebe-se: quando olhamos para as sondagens, entendemos de imediato que a histeria corrente sobre “fascismos” e “antifascismos” é uma farsa mal montada. O verdadeiro problema é haver uma luta de morte entre o Bloco e o Chega pelo terceiro lugar – e entre o PCP e o Chega pelo mesmo eleitorado a sul. A conversa dos “princípios democráticos” é, bem espremida, uma questão de mercearia eleitoral.
A MINISTRA DA SEGURANÇA SOCIAL
deu uma entrevista ao Expresso na qual, basicamente, disse que não tinha nada a ver com nada. Gostei. Para começar, tenho simpatia pela dra. Ana Mendes Godinho: não é todos os dias que vemos uma pessoa genuinamente feliz por existir.
Além disso, não saber nada sobre as áreas que tutelamos é um exemplo que vem de cima. Podemos acusar o dr. António Costa de muita coisa. Mas jamais seremos capazes de culpá-lo por ter assumido uma responsabilidade qualquer.
Apesar de tudo, vi nas reacções ao caso de Reguengos de Monsaraz um importante progresso cívico: quando a pandemia aterrou entre nós, lembro-me de acompanhar um debate profundo sobre o papel dos velhos nestes tempos de peste. A questão não estava em saber como os proteger – por toda a Europa, ninguém se importou grandemente com isso. O ponto estava em inquirir se valia a pena parar a economia só para garantir aos velhos mais uns meses, ou mais uns anos, de vida.
Que esta conversa utilitarista seja um sinal de desumanidade parece-me evidente. Mas o cálculo só é possível porque, na pirâmide do valor humano, os velhos estão na base. Muito acima deles, embora abaixo dos “jovens”, estão os cães e os gatos.
Aliás, por falar em cães e gatos, talvez o grande problema de Reguengos de Monsaraz foi nenhum dos utentes ter um exemplar como companhia. Se isso tivesse acontecido, e se os bichos tivessem passado o que passaram os humanos, meio País teria acorrido ao lar – para salvar os bichos, primeiro, e os humanos, por caridoso arrasto.
POBRE PAUL LAFARGUE.
Julgava ele, no seu O Direito à Preguiça, que a evolução tecnológica acabaria por nos libertar do trabalho. Não libertou. As razões são várias, mas há uma que custa sempre a engolir: continuamos escravos porque gostamos da escravidão. Ou, melhor dizendo, o trabalho converteu-se na principal fonte de sentido do Ocidente pós-cristão.
Se dúvidas houvesse, bastaria visitar o espantoso soundofcolleagues.com, um site que reproduz os sons do escritório para pessoas que passaram a trabalhar em casa. As opções oscilam entre “máquina do café”, “teclados”, “telefone” ou “pessoas” (a conversar). Enquanto bato estas linhas, o tema é “chuva na janela”. O som do trânsito também se ouve ao fundo.
A solidão pode explicar muita coisa. Mas a nossa síndrome de Estocolmo explica muito mais. W