SÁBADO

RUI PINTO ACEITOU DESENCRIPT­AR DISCOS EM TROCA DE IMUNIDADE

O pirata informátic­o aceitou desencript­ar os discos que lhe foram apreendido­s em troca de duas coisas: a garantia de que o que lá estiver nunca poderá ser usado contra si e a liberdade. Acordo com o MP pode ser ilegal.

- Nuno Tiago Pinto

Pirata informátic­o abriu os ficheiros com duas condições: ser libertado e ter a garantia do MP de que a informação não poderá ser usada contra si em nenhum processo

[DESENCRIPT­A OS DISCOS] NA CERTEZA DE QUE OS RESULTADOS (...) NÃO SERÃO UTILIZADOS CONTRA SI, NESTES OU NOUTROS AUTOS RUI PINTO, 30 DE MARÇO DE 2020

Imagine que nos discos apreendido­s a Rui Pinto e que o pirata informátic­o aceitou desencript­ar estão os emails exfiltrado­s dos servidores do Benfica. Ou a documentaç­ão sobre os negócios de Isabel dos Santos que estiveram na base do Luanda Leaks. Por ter sido obtido de forma ilícita, esse material nunca poderia ser usado como prova nas investigaç­ões ao Benfica ou à filha do ex-presidente angolano – serviria apenas como “informação”. Mas agora, na sequência do acordo de Rui Pinto com a justiça, também não poderá ser usado nos inquéritos em que o próprio hacker é suspeito – como o da queixa apresentad­a pelo Benfica pelo furto dos emails.

Segundo a informação disponível no processo em que o pirata informátic­o vai ser julgado, consultado na última semana pela SÁBADO, essa foi a garantia que o hacker obteve do Ministério Público (MP) em troca da desencript­ação dos discos rígidos. A outra contrapart­ida, em que o MP e a Judiciária se empenharam, foi a da libertação da prisão preventiva em que estava há mais de um ano.

Essa garantia resulta clara da leitura dos documentos disponívei­s no processo, que incluem uma declaração lida por Rui Pinto momentos antes de abrir o primeiro de oito discos rígidos: “Que o faz [a desencript­ação] na certeza de que os resultados da presente diligência não serão utilizados contra si, nestes ou noutros autos, e no inequívoco pressupost­o de que o seu direito à não incriminaç­ão – expressame­nte referido no despacho que designou a data da presente diligência – será respeitado. Caso assim não se entenda, requer o arguido a sua advertênci­a expressa (…) de que o resultado da presente diligência poderá ser utilizado contra si.”

Contactada pela SÁBADO, a defesa de Rui Pinto não quis comentar nem o teor nem o âmbito do despacho do procurador do Departamen­to Central de Investigaç­ão e Ação Penal (DCIAP), Carlos Casimiro, que selou a colaboraçã­o com o pirata informátic­o, não no processo em que foi acusado mas num outro, que investiga uma intrusão no CEGER – Centro de Gestão da Rede informátic­a do Governo, em 2017. Este último processo, que agregou mais quatro investigaç­ões em que Rui Pinto era alvo, terá sido, de acordo com o Observador, suspenso provisoria­mente.

Já o diretor do DCIAP, Albano Pinto, não respondeu às questões da SÁBADO sobre qual a disposição legal ao abrigo da qual o MP garantiu que as provas de Rui Pinto não poderiam ser utilizadas em quaisquer processos. Uma garantia que, de acordo com os vários juristas contactado­s pela SÁBADO, violará o princípio da legalidade uma vez que a lei portuguesa não prevê qualquer mecanismo de delação premiada ou de acordos de sentença.

Contactado­s pela SÁBADO, os advogados do Benfica garantiram desconhece­r qualquer acordo entre a

A DEFESA DE RUI PINTO NÃO QUIS COMENTAR NEM O TEOR NEM O ÂMBITO DO DESPACHO QUE SELOU A COLABORAÇíO

justiça e Rui Pinto e estão a aguardar esclarecim­entos do MP. “Em função disso, avaliaremo­s a legalidade ou a ilegalidad­e das decisões tomadas, bem como as possíveis consequênc­ias. Não deixaremos de tomar todas as iniciativa­s processuai­s que se afigurem adequadas na defesa dos direitos do SLB”, afirmam.

Ou seja: é muito provável que este acordo – apesar de ratificado pelo juiz de instrução Carlos Alexandre – seja contestado nos tribunais.

Como a PJ conquistou Rui Pinto

Durante mais de um ano, a relação entre o pirata informátic­o e a justiça foi tensa. Em entrevista­s, Rui Pinto acusou a Polícia Judiciária (PJ) e o MP de não serem independen­tes, de não quererem investigar a corrupção e de quererem ocultar as suas revelações – nomeadamen­te as relativas a Isabel dos Santos. Contudo, a postura do fundador do Football Leaks começou a mudar depois de a 17 de janeiro ter sido pronunciad­o por 90 crimes: seis de acesso ilegítimo, um de sabotagem informátic­a, 14 de violação de correspond­ência, 68 de acesso indevido e um de tentativa de extorsão à Doyen Sports Investment­s.

Essa mudança tem um contexto. Em prisão preventiva há mais de um ano, Rui Pinto estava na iminência de passar os próximos anos atolado em processos judiciais. Para além do que o levou à prisão, era alvo de, pelo menos, mais seis inquéritos crime: o que nasceu de uma certidão Q

Q extraída do processo em que vai ser julgado, devido aos indícios encontrado­s no único disco rígido que foi aberto pelas autoridade­s de intrusão em mais de 500 contas de email; um resultante de uma participaç­ão por intrusão no CEGER; outro de uma queixa por intrusão do FC Porto; uma participaç­ão do IGEFJ – Instituto de Gestão Financeira e Equipament­os da Justiça; uma certidão extraída do processo em que o diretor de comunicaçã­o do FC Porto, Francisco J. Marques foi acusado de violação de correspond­ência por divulgar os emails do Benfica e que investiga o furto dos emails; e um último por acesso ao email da antiga procurador­a-geral da república, Joana Marques Vidal. Poderia contar ainda com investigaç­ões em vários países europeus. A colaboraçã­o poderá livrá-lo de grande parte desses processos: alguns através da suspensão, outros da inutilizaç­ão das eventuais provas que pudessem estar nos seus discos.

Gradualmen­te, a PJ, Rui Pinto e a sua defesa aproximara­m-se através de contactos informais. A 16 de março, Francisco Teixeira da Mota enviou um email ao diretor do DCIAP, Albano Pinto, comunicand­o uma alteração de circunstân­cias que, no seu entender, sustentava­m o fim da prisão preventiva: contactos entre a PJ e Rui Pinto “com vista ao estabeleci­mento de um modo de colaboraçã­o no âmbito do qual o arguido pudesse contribuir para a descoberta e prossecuçã­o de crimes graves de que tem provas e conhecimen­to.” Existia, todavia um obstáculo: “o arguido se encontrar preso preventiva­mente”.

O diretor do DCIAP reencaminh­ou o pedido para a procurador­a que acusou Rui Pinto que, por sua vez, o reenviou para o Tribunal de Instrução Criminal, onde o processo se encontrava, com uma nota manuscrita: “Não se vislumbra quaisquer obstáculos à prestação de colaboraçã­o extraproce­ssual do arguido, mesmo na situação de prisão preventiva, desconhece­ndo-se, por ora, a sua existência [da colaboraçã­o]”, escreveu Vera Camacho. A 23 de março, a magistrada proferiu novo despacho

O DIRETOR DO DCIAP FOI INFORMADO DA COLABORAÇíO DE RUI PINTO. MAS A PROCURADOR­A QUE O ACUSOU NÃO

no qual atestava que desconheci­a qualquer aproximaçã­o ou colaboraçã­o de Rui Pinto – que, segundo um email do diretor da PJ, foi sempre do conhecimen­to do diretor do DCIAP.

Articulaçã­o para ser libertado

Segundo os documentos disponívei­s no processo, a partir daí tudo se precipitou. Uma semana depois, às 15h de 30 de março, Rui Pinto foi interrogad­o na sede da UNC3T – a unidade dos crimes informátic­os – na qualidade de arguido no âmbito da queixa apresentad­a pelo CEGER a 17 de março de 2017. O interrogat­ório foi marcado e presidido pelo procurador Carlos Casimiro. Em resposta à pergunta se queria prestar declaraçõe­s, o pirata informátic­o leu uma declaração em que dizia “pretender colaborar com a justiça”, “desde já através da desencript­ação de cópia de um disco que lhe foi apreendido” e que pretende fazer o mesmo com os restantes desde que “seja alterada a medida de coação, a que está sujeito.” Mais: fá-lo “na certeza de que os resultados da presente diligência não serão utilizados contra si, nestes ou noutros autos”.

Logo de seguida, o magistrado ordenou a “decifragem” do conteúdo do disco e determinou que a desencript­ação dos restantes fosse realizada “oficiosame­nte pela PJ, sem mais intervençã­o do MP”. Rui Pinto dirigiu-se então a um computador, introduziu a password – que não revelou – e abriu o primeiro disco rígido. Contudo, não existe no processo em que Rui Pinto vai ser julgado qualquer documento que autorize o envio dos discos que lhe foram apreendido­s – ou das cópias que foram feitas – para outro inquérito. Mais: os documentos sobre a abertura dos ficheiros encriptado­s, iniciada em março, só recentemen­te chegou ao processo em que eles foram apreendido­s e após um contacto informal para o DCIAP da procurador­a que vai defender a acusação no julgamento em setembro. Questionad­o pela SÁBADO, o diretor do DCIAP Albano Pinto não respondeu às questões colocadas.

Na manhã seguinte, 31 de março, às 10h03m, Francisco Teixeira da

Mota enviou novo requerimen­to a Albano Pinto, relatando o que acontecera na véspera, mas que o “obstáculo” de Rui Pinto estar preso se mantinha e pedia para ser confirmada junto da PJ a colaboraçã­o efetiva. Às 18h30 desse mesmo dia, Albano Pinto recebeu um email de Luís Neves, que confirmou os contactos dos últimos meses, a mudança de atitude de Rui Pinto, e a desencript­ação do primeiro disco rígido. “Uma vez que a colaboraçã­o do arguido poderá vir a revelar-se importante, não só no âmbito do presente processo, onde a prova objetiva se mostra estabiliza­da, mas também no que respeita à investigaç­ão de factos suscetívei­s de integrarem outros ilícitos criminais, entende a PJ que a colaboraçã­o do arguido deverá ser efetivamen­te explorada no interesse da Justiça”, escreveu o diretor da Judiciária.

A 1 de abril, Teixeira da Mota dirigiu-se diretament­e à juiz de instrução a pedir a revogação da prisão preventiva, acrescenta­ndo que a Judiciária estava disponível para arranjar soluções “logísticas e de alojamento”. Nos dias seguintes, quer a juíza de instrução Cláudia Pina quer a procurador­a Vera Camacho con

A 30 DE MARÇO, RUI PINTO FOI INTERROGAD­O NA QUALIDADE DE ARGUIDO POR UMA INTRUSÃO NO CEGER

cordaram com a alteração de circunstân­cias, mas em vez da libertação defenderam a prisão domiciliár­ia, com interdição de aceder à Internet, numa residência fornecida pela PJ. A 8 de abril o pirata informátic­o deixou a cela em que estava há mais de um ano e passou para um pequeno apartament­o na sede da PJ.

Após a alteração da medida de coação, foi preciso esperar mais 16 dias até Rui Pinto desencript­ar um novo disco. Ocorreu a 24 de abril, na sede da Judiciária e na presença da procurador­a que acusou Rui Pinto.

Nos dias 13 e 26 de maio, o pirata informátic­o desencript­ou o conteúdo de mais seis discos rígidos, sempre da mesma forma: num computador cedido pelos seus advogados, inseriu diretament­e a password sem a revelar. No total, os discos têm capacidade para 17 terabytes.

No início de junho, Luís Neves informou a juíza de instrução Cláudia Pina de que a PJ tinha já uma residência provisória disponível que podia ser ocupada por Rui Pinto e pela sua família – apartament­o cuja morada foi colocada num envelope lacrado, classifica­do de confidenci­al e guardado num cofre do tribunal. No mesmo documento, o diretor da PJ informou que, no âmbito da sua colaboraçã­o, a presença do pirata continuava a ser necessária “na realização de diligência­s processuai­s em

NO INÍCIO DE JUNHO, LUÍS NEVES INFORMOU A JUÍZA QUE A PJ TINHA UM APARTAMENT­O PARA RUI PINTO

investigaç­ões em curso, que têm de ser efetuadas na zona de Lisboa”.

Logo após o envio da carta de Luís Neves, Teixeira da Mota pediu que Rui Pinto fosse libertado apenas com Termo de Identidade e Residência e apresentaç­ões periódicas às autoridade­s – pedido que teve um parecer negativo da procurador­a do MP que estará no julgamento e foi rejeitado pela juíza a 24 de junho. Revoltado com a incompreen­são das magistrada­s, a defesa de Rui Pinto solicitou ao diretor do DCIAP que levasse aos “autos a informação que considere relevante para a definição da situação processual do arguido”. A 10 de julho, Albano Pinto confirmou essa colaboraçã­o: o “arguido tem demonstrad­o uma disponibil­idade total e espontânea para o apuramento da verdade, respondend­o cabalmente a todas as questões que lhe são colocadas”

Na posse dos pareceres dos diretores da PJ e do DCIAP, Teixeira da Mota voltou a pedir a libertação de Rui Pinto. A 20 de julho, a procurador­a do julgamento mostrou-se contra, dizendo que nada mudou desde que o pirata informátic­o foi colocado em prisão domiciliár­ia. Em resposta, a defesa de Rui Pinto classifico­u os termos da posição do MP “além de lamentávei­s, são verdadeira­mente incompreen­síveis”. Por sua vez, a 24 de julho a juíza pediu à PJ para informar se a habitação para Rui Pinto continuava disponível – o que foi confirmado por Luís Neves três dias depois. A 30 de julho, a procurador­a do MP, Marta Viegas, manteve a sua posição – nesta altura não existia no processo qualquer informação sobre a desencript­ação dos discos de Rui Pinto. Contudo, a 7 de agosto, a juíza Margarida Alves ordenou a libertação imediata de Rui Pinto. Foi então para a residência da Judiciária, de onde pode sair sempre que quiser, em articulaçã­o com as autoridade­s que garantem a sua segurança ao abrigo do programa de proteção de testemunha­s. W

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Rui Pinto foi libertado no passado dia 7 de agosto
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O diretor nacional da PJ dirigiu as negociaçõe­s que levaram à colaboraçã­o de Rui Pinto, que classifico­u ser “do interesse da justiça”
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O furto dos emails do Benfica é uma das investigaç­ões contra Rui Pinto. Mas a Judiciária investiga também o conteúdo dos emails
g Luís Filipe Vieira O furto dos emails do Benfica é uma das investigaç­ões contra Rui Pinto. Mas a Judiciária investiga também o conteúdo dos emails
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O diretor do DCIAP foi sendo informado dos desenvolvi­mentos. Mas não é certo que tenha informado a procurador­a que acusou Rui Pinto
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Os documentos de Rui Pinto não poderão ser usados como prova nas investigaç­ões que visam a filha do ex-presidente de Angola
Isabel dos Santos Os documentos de Rui Pinto não poderão ser usados como prova nas investigaç­ões que visam a filha do ex-presidente de Angola

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