OS GRUPOS FASCISTAS À LUPA
Os emails com ameaças de morte a deputados são assinados por movimentos saídos do grupo neonazi de Mário Machado, ambos criados em julho. Um é ainda totalmente desconhecido. O outro é liderado por um militante ativo do Chega.
Quem são os membros da Resistência Nacional e que relações têm com o Chega
Quando Mamadou Ba se sentou à mesa para jantar com amigos, no dia 12 de agosto, tinha na caixa de entrada do email uma ameaça de morte por ler. Teve de ser um telefonema a meio do jantar a alertá-lo da situação: “Uma das pessoas visadas ligou-me a avisar do email. Eu disse: ‘Estou sempre a receber ameaças, qual é o problema?’ Ela respondeu: ‘Esta ameaça vem com um prazo.’ Não quis estragar o meu jantar, claro, mas depois fui logo lê-lo às nove e tal da noite”, relata o dirigente do SOS Racismo. O email não poderia ser mais direto (apesar de em mau português): “Foi atribuído um prazo de 48 horas para os dirigentes antifascistas e antirracistas incluídos nesta lista, para rescindirem das suas funções políticas e deixarem o território por
tuguês.” O texto vinha assinado por “Nova Ordem de Avis/Resistência Nacional”. Mamadou Ba era um dos 10 destinatários da mensagem, também enviada às deputadas Mariana Mortágua, Beatriz Gomes Dias (ambas do Bloco de Esquerda) e a Joacine Katar Moreira (não inscrita).
Com a Unidade de Contraterrorismo da Polícia Judiciária a investigar o caso, a suspeita inicial da autoria das ameaças recai sobre quem assina os emails: os micromovimentos Resistência Nacional (RN) e Nova Ordem de Avis (NOA), ambos criados em julho. O primeiro é menos misterioso do que o segundo, de quem ninguém conhece membros ou origem; há até quem acredite ser um grupo fictício (ver caixa). Já a RN é liderada por três dissidentes da extinta Nova Ordem Social (NOS), grupo neonazi de Mário Machado, e aglomera entre 50 e 60 membros de vários partidos, como o Chega e o PNR (entretanto, Ergue-te), e de fragmentos de outros micromovimentos nacionalistas, apurou a SÁBADO.
Da cúpula da RN vem a garantia de que o movimento “não tem nada a ver com as ameaças [por email], nem com o NOA”. “Nunca teremos um comportamento belicista, nunca faremos ações dessa maneira”, garante à SÁBADO o líder Nuno Cardoso, antigo homem-forte de
NUNO CARDOSO FOI DETIDO COM MACHADO NA SUÉCIA. NO CHEGA JÁ LHE PEDIRAM PARA ORGANIZAR A CONCELHIA DA COVILHÃ
Mário Machado na NOS. Cardoso chegou a ser detido na Suécia com Mário Machado, quando iam a caminho de uma conferência neonazi. Também foi esfaqueado na emboscada dos Hells Angels em Loures. Atualmente é militante ativo do Chega e já lhe terá sido pedido que “organize a concelhia da Covilhã”, como conta o próprio.
À SÁBADO, André Ventura admite que “não fazia ideia” de militantes do Chega envolvidos no projeto — mas que serão punidos. “Confesso que não sabia o que era a Resistência Nacional até àquela fantochada à frente do SOS Racismo. Não faço ideia de quem esteve envolvido naquela amostra de desfile, mas o Chega nada tem que ver com isso e agirá disciplinarmente se tiver entre os seus membros ou dirigentes elementos ligados a este tipo de ações”, salientou. Recorde-se que o líder do Chega anunciou em janeiro, após uma investigação da SÁBADO, que iria fazer “um levantamento o mais rigoroso possível” ao passado político dos militantes, comprometendo-se a tomar medidas caso haja ligação a “movimentos extremistas, subversivos ou racistas”. Mas ainda não passou de um anúncio: os próximos passos estão ainda por decidir pelo conselho de jurisdição do Chega.
Apesar do seu passado ao lado de Mário Machado, Nuno Cardoso garante que o projeto RN “não é racista, nem uma continuação da NOS”: “Nós não somos um grupo etnonacionalista, nós não queremos mandar ‘ninguém para a terra deles’. Temos um nacionalismo moderno. O multiculturalismo é importante, mas acredito que deve ser de forma controlada para não haver uma aculturação”, explicou. Contudo, a garantia do líder Nuno Cardoso contradiz o próprio grupo de Telegram do movimento (no qual a SÁBADO esteve dois dias, antes de ser expulsa), que está repleto de intervenções xenófobas e racistas.
O racista arrependido
Entre declarações xenófobas – “Se nada fizermos, Portugal será em 20 anos uma extensão de um território africano” – e homofóbicas – “Essa malta LGBT curava-se rápido… enxada na mão a cavar o dia todo a pão e água”, houve até ameaças de morte naquele chat. “Na minha opinião só o povo pode fazer alguma coisa, e quando me refiro a fazer alguma coisa é sair à rua em massa e assassinar alguém importante”, escreveu Nuno Pais, por coincidência dias antes das ameaças a deputados e ativistas. Confrontado pela SÁBADO, Nuno Pais admitiu que “foi uma afirmação infeliz” e que foi expulso do movimento: “Obviamente não pretendo nada disso. A direção da RN decidiu afastar-me da organização e com razão.”
Q Nuno Cardoso admite que “é muito difícil de controlar atempadamente o que se diz e faz no grupo.” “Não fomos a tempo de bloquear certos comentários. É difícil controlar tudo, porque não podemos estar sempre em cima daquilo, mas vamos agir para evitar erros futuros”, frisa. Se a liderança garante que tenta controlar as barbaridades ditas pelos membros, então a direção deve começar por se vigiar a si própria. O líder Ricardo Santos, 20 anos, também ex-membro da NOS, escreveu no Telegram da RN que “o islâmico é perigoso, causa terrorismo, mata, enquanto o africano causa miscigenação, traz sida, aumenta a criminalidade, mata”.
Na rede social Parler, Santos usa uma fotografia de cabeça rapada e mostra a sua admiração pelo Terceiro Reich. Na véspera de apresentar a Resistência Nacional, no início de julho, publicou uma cruz celta com a legenda “sou branco e com orgulho”, acompanhado pelo hashtag 14/88 (o 14 é uma referência ao slogan do supremacista branco David Lane, que dizia “devemos assegurar a existência do nosso povo e um futuro para as crianças brancas”, enquanto o 88 se refere à saudação Heil Hitler, sendo H a oitava letra do alfabeto).
Uma ação “feita à pressa”
O movimento deu nas vistas com a sua primeira ação na sede do SOS Racismo. De tochas na mão e máscaras brancas a tapar o rosto, cerca de 20 membros (segundo as notícias) da RN gritaram o nome de vários polícias assassinados – e tudo definido em cinco dias. “Foi organizado muito em cima do joelho e tudo em mensagens de Telegram. Nem sabíamos o número certo de participantes”, explicou Nuno Cardoso. A Polícia Judiciária observou a ação à distância, mas foram identificados pelos membros da RN.
À semelhança do que vai acontecendo com outras estruturas, a RN é uma grande misturada de microgrupos nacionalistas. Há membros do Movimento Armilar Lusitano, do
RESISTÊNCIA NACIONAL EXPULSOU UM MEMBRO POR SUGERIR SAIR À RUA PARA “ASSASSINAR ALGUÉM IMPORTANTE”
Portugueses Primeiro (de João Martins, condenado pelo assassinato de Alcindo Monteiro) e até do recém-criado Liga Nacional, protopartido liderado pelo fundador e dissidente do Chega Pedro Perestrello, que tem acolhido vários dissidentes do partido de André Ventura, como Miguel Tristão Teixeira e Rui Malheiro.
De acordo com Mamadou Ba, este grande número de microgrupos nacionalistas deve-se a “um certo desespero da extrema-direita clássica”. “Há aqui algum desespero da disputa hegemónica de quem (e como) comanda a linha nacionalista mais dura”, argumenta o dirigente do SOS Racismo, associação que acompanha este fenómeno há 30 anos. E o apoio estrangeiro é um sinal de validação: numa foto no Facebook, com uma bandeira da RN na mão surge o terceiro líder, Alexandre Santos, ao lado do seu amigo Blagovest Asenov, da Bulgaria Resistance, que em 2017 ameaçou os manifestantes do Orgulho Gay de Sofia dizendo querer “limpar a praga” e descrevendo migrantes como “parasitas”. Não seria a primeira vez que iria conviver com Asenov: na conferência internacional da Nova Ordem Social de 10 de agosto de 2019 – que a SÁBADO acompanhou –, Santos traduziu o discurso do búlgaro.
Entretanto, as 48 horas impostas aos visados para abandonarem funções e saírem do País já foram ultrapassadas há muito. Quem está na lista sente medo, mas “a vida continua”, diz Vasco Santos, ativista da Frente Unitária Antifascista (FUA): “Não devemos desvalorizar as ameaças, mas sem ceder ao medo.” E vai pedir proteção à PJ.
Para Mamadou Ba, intimidações já fazem parte do seu dia a dia — e até já conta com proteção policial. “Eu já recebi cartas com balas desenhadas, já me fizeram montagens com a minha cara a levar com um tiro na testa, tanta coisa. Acho que a grande novidade destas ameaças é o facto de esta escalada ter apanhado pessoas eleitas”, considerou. “Por norma, estes movimentos nacionalistas são constituídos por poucas pessoas, mas basta um maluco para fazer estragos.” W