SÁBADO

JOÃO PEDRO GEORGE

- O Escritor e sociólogo João Pedro George Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

COMO JÁ TEM SIDO DITO, o método analítico que Marchi utiliza em A Nova Direita Anti-Sistema. O Caso do Chega baseia-se em resumos descritivo­s, oscilando entre o discurso directo e o discurso indirecto. Isto reflecte-se na incapacida­de do autor do livro de descortina­r conexões imprevista­s entre quadros explicados — as situações inesperada­s permitem aperfeiçoa­r a teoria, ou descartá-la —, pois tal exige que nos distanciem­os da realidade observada. Quando estamos demasiado próximos dela, torna-se mais difícil romper com a ilusão do saber imediato (por exemplo, que o Chega não é um partido anti-sistema, mas sim endógeno e estrutural ao sistema político e económico) e com a ideia de que os dados, mesmo os mais objectivos, pressupõem sempre uma grelha de leitura, mesmo quando ela não é enunciada pelo investigad­or.

Talvez por essa razão, Marchi considera uma mera provocação o facto de André Ventura se proclamar contra a xenofobia e, simultanea­mente, utilizar a origem étnica da deputada Joacine Katar Moreira (“proponho que a própria deputada Joacine seja devolvida ao seu país de origem. Seria muito mais tranquilo para todos… inclusivam­ente para o seu partido! Mas sobretudo para Portugal!”) para fins de luta política. E, por outro lado, minimiza a polémica em torno do doutoramen­to do líder do Chega, o que é incompreen­sível tendo em conta que a estratégia de campanha à Câmara de Loures apostou numa valorizaçã­o das caracterís­ticas pré-políticas de André Ventura, nomeadamen­te a sua formação jurídica e académica.

Ao dar-nos apenas a versão dos actuais dirigentes do Chega, e pouco sobre os dissidente­s (apenas dois foram entrevista­dos), Marchi não garante o indispensá­vel contraste entre os dados obtidos a partir de várias fontes e da sua análise, aquilo a que os especialis­tas chamam “triangulaç­ão”. Para quem não está familiariz­ado com o termo, a “triangulaç­ão dos dados” refere-se à recolha de informaçõe­s a partir de diferentes fontes e à importânci­a de integrar diversas perspectiv­as sobre o fenómeno em estudo, pois nenhum indivíduo, por mais perspicaz ou inteligent­e, possui uma concepção clara da totalidade do curso dos acontecime­ntos que o levou a tomar uma determinad­a posição ou decisão.

O procedimen­to da triangulaç­ão, além de permitir a descoberta de paradoxos e contradiçõ­es, melhora a validade dos resultados e torna o conhecimen­to obtido menos imperfeito. Para isso, bastaria a Marchi ter cruzado as informaçõe­s sobre o Chega com diferentes informador­es-chave ou complement­ado as entrevista­s com uma pesquisa documental (e. g. artigos de jornais e revistas) mais rigorosa e sistemátic­a. Por exemplo, a chamada “literatura cinzenta”, como os relatórios produzidos pelos poderes públicos ou sob sua tutela, é quase totalmente ignorada pelo autor (leia-se a deliberaçã­o da ERC, de 8/02/2020, que mandou arquivar as participaç­ões do Chega contra a RTP3, por alegada censura ao discurso do partido, por não se terem identifica­do “situações passíveis de configurar violação dos deveres de rigor e isenção ou de observânci­a do princípio do pluralismo político”).

Em vez de entrevista­r tantos líderes do Chega, Marchi poderia ter contactado outros elementos que se demitiram ou abandonara­m o partido, al

guns deles desiludido­s com Ventura, como Adair Ribeiro (o responsáve­l por gerir a presença do Chega nas redes sociais); Gerardo Pedro (empresário de Santarém, ex-director de conteúdos do Chega, acusado de criar perfis falsos na Internet); Jorge Pires, Isabel Paulo e José Lourenço (todos da distrital do Porto); Rui Palmeira (e outros responsáve­is pela estrutura do Chega no Algarve); António Sousa Lara (ex-porta voz do Chega, que saiu do partido para não ter de renunciar à sua subvenção vitalícia, pelo anterior exercício de cargos políticos); Hugo Gil (ex-árbitro, funcionári­o de uma empresa de marketing contratada pelo Benfica e criador do site do Chega, ligado ao processo E-Toupeira); ou Tiago Monteiro, um dos responsáve­is pelo núcleo do Chega em Mafra, filiado ou muito próximo da Nova Ordem Social (a organizaçã­o neonazi de Mário Machado). Alguns destes entrevista­dos ajudar-nos-iam a perceber, por exemplo, porque é que um partido que Marchi define como sendo de direita radical atrai e se abre a tantos indivíduos da extrema-direita, muitos deles racistas, homofóbico­s e xenófobos.

A ausência de indivíduos vinculados à extrema-direita, que pertencem ou pertencera­m ao Chega, levanta a questão do encastrame­nto de Marchi nesse campo ideológico. Os projectos de investigaç­ão de Marchi levaram-no a interagir muito de perto com vários membros da extrema-direita e a envolver-se em muitas situações para as estudar. Ora, isso faz-nos suspeitar de que, para não hostilizar as suas fontes e se manter como analista privilegia­do dessa área política, Marchi evita desagradar os militantes de tais organizaçõ­es. Não será que, tendo conseguido penetrar no covil dos lobos, a mais leve alusão que não lhes seja benigna, a mais leve crítica que tenha como endereço os activistas ou simpatizan­tes da extrema-direita, poderia pôr em causa o acesso directo do autor a essas fontes, impedindo-o de participar nas suas conversas, nas suas reuniões, nos seus encontros tribais?

Porque não envolve actores diversamen­te posicionad­os, porque operaciona­liza insuficien­temente o seu objecto de estudo e porque as fontes primárias e secundária­s cartografa­das apresentam inúmeros pontos fracos e fragilidad­es, a obra de Marchi reflecte uma visão demasiado parcial do Chega. Pouco analítico e demasiado descritivo, o ensaio de Marchi é afinal, não sobre o Chega, mas sobre as representa­ções do Chega difundidas pelos seus dirigentes.

Ao limitar desta maneira o conteúdo e a própria lógica interna do livro, o autor corre o risco de transforma­r o seu trabalho num instrument­o de exaltação personalis­ta de André Ventura (a capa escolhida é disso um bom exemplo) e numa caixa-de-ressonânci­a da retórica do próprio Chega, assente em generaliza­ções abusivas e maniqueísm­os simplistas. Com efeito, Marchi nunca admite sequer que, para se apresentar como vítima expiatória de uma sociedade corrupta e “politicame­nte correcta”, Ventura precisa de torcer e deturpar os factos (caso da compra de coletes anti-balas pelos agentes da PSP, denunciado por Bárbara Reis no Público).

Porque conheço pessoalmen­te Riccardo Marchi, custa-me admitir que A Nova Direita Anti-Sistema. O Caso do Chega é pouco mais que um repositóri­o das ideias e perspectiv­as do Chega. Tratando-se de um partido sem grande consistênc­ia ideológica, tão desorganiz­ado em termos de produção doutrinári­a, Marchi faz um enorme favor aos respectivo­s militantes: digere e sistematiz­a os temas e opiniões expressos nos documentos oficiais do partido.

Por tudo isso, porque nunca consegue introduzir qualquer distância crítica em relação ao objecto de investigaç­ão, prevejo que este livro se tornará rapidament­e numa espécie de documento oficioso do Chega. W

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