História
Refugiados judeus trouxeram novas mentalidades e negócios
Há 75 anos, quando a II Guerra Mundial terminou, milhares de refugiados judeus já tinham chegado a Portugal e partido para a América. Nos poucos anos que cá ficaram, fizeram uma pequena revolução nos costumes. Alguns permaneceram e as suas famílias têm hoje pequenos impérios empresariais.
“Éa melhor história de amor que conheço”, diz à SÁBADO Vasco Becker-Weinberg sobre a relação dos seus avós, Siegfried e Magdalena, que se conheceram num baile de máscaras nos anos 30, em Hanau, nos arredores de Frankfurt, Alemanha. Ele era judeu, ela era uma alemã “pura” aos olhos de Hitler e das primeiras leis antissemitas. A relação não poderia ter futuro. “Começou a ser impossível viver na Alemanha sendo judeu, tinha de sair para sobreviver”, diz Vasco Becker-Weinberg, 40 anos, professor na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.
Siegfried Weinberg pertence ao grupo de judeus que perceberam o que aí vinha e saiu a tempo. Em 1937, viajou para Portugal – e Magdalena ficou para trás. Os dois começaram a trocar então correspondência até ao dia em que Magdalena saiu de casa. “Fugiu. Foi ter com ele…”, diz o neto.
Já em Portugal, Magdalena e Siegfried tiveram o primeiro filho, Máximo (mais tarde nasceria Ilda), e o casal nunca mais saiu do País. Siegfried instalou-se em Coimbra e começou os negócios: fabricou objetos de uso doméstico, que vendeu em mercados, trabalhou numa relojoaria de um outro judeu alemão e montou uma empresa de importação e exportação de vidros.
Quando percebeu como eram más as camas onde os portugueses dormiam, Siegfried viu uma oportunidade. Conseguiu uma patente de colchões de molas através de um contacto que tinha em Inglaterra e arranjou financiadores no Porto – a família Moreira, de que é descendente o atual presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira. Nasceu assim, em 1951, a Molaflex, numa cave de 200 m2 em São João da Madeira. A produção de colchões começou em 1954, mas foi também nesse ano que Siegfried morreu.
Máximo, o filho, tinha então 16 anos. Na década de 1960, vendeu a participação da família na Molaflex e fundou a Climax, também de colchões. Em 1989, quando morreu num desastre de carro em Silves, já
“OS HABITANTES DE ALCOBAÇA NÃO PODIAM TOLERAR QUE [REFUGIADOS] PASSASSEM O NATAL NA RUA”
era casado e tinha três filhos (de 10, 9 e 5 anos). Vasco Becker-Weinberg, que conta a história à SÁBADO, era o menino de 10 anos. Em 2003, a família vendeu a Climax.
Quanto a Magdalena, que teve de deixar a família e o país onde nasceu, que perdeu o marido e um dos filhos, queimaria todas as cartas que trocou com Siegfried. É pelo menos uma história que corre na família – não se sabe com certeza o que aconteceu à correspondência. Magdalena amaldiçoaria para sempre a política e os políticos – mandava desligar a televisão sempre que aparecia algum.
Pobreza e generosidade
Quando Siegfried Weinberg chegou a Lisboa, tinha o mesmo objetivo que milhares de outros teriam nos anos seguintes: ficar o tempo suficiente para arranjar um bilhete para a América (a maioria para os EUA). Portugal era um país neutro, mas não sossegava nenhum judeu em fuga, principalmente depois de 1940, quando Paris foi tomada pelas tropas de Hitler. E se o regime português, regra geral, não tratou mal os refugiados judeus, também não os quis cá.
Foram dezenas de milhares os que entraram em Portugal por todos os meios, alguns a pé e de barco, muitos pela fronteira de Vilar Formoso (carro ou comboio). O Estado Novo começou a canalizá-los para alguns locais fora de Lisboa e Porto, onde não podiam trabalhar nem sair sem autorização. Eram as zonas de residência fixa, áreas balneares e estâncias termais, ou seja, com pensões e hotéis disponíveis: Caldas da Rainha, Figueira da Foz, Luso, Foz do Arelho, Buçaco, Ericeira, ou Curia. Rapida
mente, os quartos esgotaram e as famílias locais começaram a acolhê-los. No Estoril e em Cascais, ficaram os mais abastados. A chegada em massa de refugiados trouxe mudanças e grandes histórias.
Marion Kaplan, historiadora e professora na Universidade de Nova Iorque, lançou em 2019 o livro Hitler’s Jewish Refugees – Hope and Anxiety in Portugal (Os refugiados judeus de Hitler – esperança e ansiedade em Portugal). O ponto de partida era formidável para ela, filha de refugiados. “Quando dois arquivistas no Museu do Património Judaico de Nova Iorque me perguntaram se eu estava interessada em algumas cartas não abertas enviadas para refugiados judeus em Lisboa, corri para o edifício, que fica na outra ponta de Manhattan. Descobri um tesouro de mensagens perdidas: 207 cartas e 76 postais.”
Os judeus que estavam em Lisboa correspondiam-se com amigos e familiares que ficaram para trás (é o caso de Paul Stricker, de que falaremos mais à frente). Muitas vezes, quando as cartas chegavam a Portugal, os destinatários já tinham partido para a América. Toda essa correspondência nova, mais a que já era conhecida, a somar ainda aos testemunhos de sobreviventes, permitiu a Marion Kaplan traçar um cenário de tremenda tensão de muitos refugiados em Portugal. “Alguns tomavam comprimidos para acalmar os nervos, outros jogavam ou tinham affairs para esquecer o que perderam.”
Em Portugal, os refugiados encontraram pequenos gestos de compaixão. Um guarda na fronteira que trouxe água fresca (“a água mais fresca e refrescante que tomámos na vida”), os habitantes de Vilar Formoso que levaram “grandes panelas de sopa”, pão e fruta. Ou “a família Shadur, totalmente sem dinheiro, [que] parou em Alcobaça para passar a noite dentro do carro. Uma noite fria de dezembro. Dois portugueses pararam e perguntaram se precisavam de ajuda. Foram-se embora, mas
WEINBERG FUNDOU A MOLAFLEX QUANDO VIU COMO ERAM MÁS AS CAMAS ONDE OS PORTUGUESES DORMIAM
pouco depois voltaram para dizer que os habitantes de Alcobaça não podiam tolerar que estranhos passassem o Natal na rua e que o presidente da câmara os tinha convidado para a ceia de Natal e para passar a noite num hotel.”
Miriam Stanton relata no livro que os portugueses chegavam a abordar os refugiados na rua e perguntar se precisavam de ajuda: “Pessoas de todo o tipo – médicos, empresários, operários, etc. – davam o número de telefone e a morada a refugiados e diziam-lhes para ligar se precisarem de ajuda.” São casos atrás de casos. Médicos que os trataram gratuitamente na Figueira da Foz; donos de pensões que se recusaram a receber pelas estadias (“Pode enviar-me o dinheiro quando estiver em Nova Iorque”). “Em Lisboa, uma refugiada perguntou numa loja quanto custava um chapéu, mas
“PARECIA IMPOSSÍVEL QUE ALGUÉM TIVESSE TANTO INTERESSE POR NÓS POR NENHUMA RAZÃO PRÁTICA”
Q percebeu que custava demasiado. Quando se ia embora, o dono da loja foi atrás dela e deu-lhe o chapéu de presente.”
Nas suas memórias (This, Too, Shall Pass Away, 1945), o realizador russo George Rony (1908-1971) contou a história da sua fuga, juntamente com a mulher, um bebé de 10 meses e um cão, desde Paris até Lisboa. Quando pararam o carro em Gouveia para alimentar o bebé com a única coisa que tinham – uma banana – começaram a aparecer moradores com pão, ovos, manteiga, queijo e leite. Em Lousa de Cima (Loures), onde o carro avariou, pernoitaram na casa do padeiro e depois passaram uns dias na quinta de um abastado proprietário local. Foi esse homem, Ângelo de Campos, que depois fez uma coleta de 200 contos pela vila para que a família conseguisse o visto para os EUA. “São as poupanças de toda a comunidade. (…) Expliquei que, com certeza, lhes pagará mal tenha o seu dinheiro”, disse-lhe Ângelo de Campos.
Miriam Stanton diz à SÁBADO que
estes gestos nada tinham a ver com questões religiosas ou políticas. “Penso que a generosidade das pessoas mais pobres tem a ver com o colocar-se no lugar do outro [‘walking in other people’s shoes’, na sua expressão original)”. O escritor Alfred Döblin refletiu no livro Viagem ao Destino (Asa, 1997) o que se passou em Portugal: “Parecia quase impossível que alguém tivesse tanto interesse por nós por nenhuma razão prática. Mas foi esse o caso. Não havia nada por trás a não ser filantropia e boa vontade. Tendo a experiência da guerra e do caos da retirada e da fuga, aprendemos que isso era apenas um lado da Humanidade.”
Ainda assim, Marion Kaplan deixa uma ressalva à SÁBADO. “Se os refugiados tivessem tirado os empregos de outros, ou fossem vistos como competidores, penso que a classe média portuguesa tê-los-ia visto com ressentimento. Mas se tivessem dinheiro para abrir os seus próprios negócios, o que alguns fizeram antes e depois de 1938, eram tratados bem. É complicado... Negócios eram bem-vindos, mas tirar empregos não”, diz. Veja-se o lobby dos médicos, que, temendo uma invasão de clínicos judeus, conseguiu em 1929 que a Assembleia Nacional proibisse que estrangeiros (por outras palavras: refugiados) pudessem exercer.
Indo ao encontro do plano de Salazar, a esmagadora maioria das dezenas de milhares de judeus que entraram em Portugal acabou por sair. Mas alguns, por uma razão ou outra, ficaram e acabaram por transformar o País: novas empresas, produtos revolucionários e outras maneiras de estar no espaço público.
O irrequieto Stricker
Num artigo publicado na Vértice, em 1995, a investigadora alemã Christa Heinrich relata que a proibição de trabalhar levou os refugiados (que, na sua maioria, já tinham perdido quase tudo na fuga) a situações de desespero: “Uma testemunha portuguesa da época viu como alguns recolhiam os restos do leite e do café Q
EM LOUSA DE CIMA FIZERAM UMA COLETA DE 200 CONTOS PARA AJUDAR REFUGIADOS A PAGAR VISTO PARA OS EUA
Q das mesas de cafés em Coimbra. O que dava uma certa segurança material eram objetos de valor trazidos consigo. Joias, adornos, peles e diamantes, até carros e bicicletas encontravam compradores portugueses.” Só havia duas soluções: ou fazer biscates ou recorrer a ajuda das organizações internacionais judaicas.
Erich Brodheim começou a fazer biscates nas Caldas da Rainha. Vendeu manteiga e aspiradores, deu aulas de ténis e equitação. Trouxe para Portugal o fecho-éclair, as calças Wrangler, o papel químico, os isqueiros, as caixas de comprimidos, os estojos de pó de arroz, as armações e óculos de sol e as passagens de modelos com roupa. Hoje, a sua família tem várias lojas na Avenida da Liberdade, em Lisboa, através das marcas que representam em Portugal, como a Burberry, Furla, Tod’s, Guess, Timberland, Carolina Herrera e Vans. E ainda são donos da Optivisão, a maior rede de óticas do País.
O império arrancou com a representação em Portugal de meias de
BRODHEIM COMEÇOU A FAZER BISCATES NAS CALDAS. HOJE, A FAMÍLIA REPRESENTA VÁRIAS MARCAS DE LUXO
vidro. Aquela que viria a ser sua mulher, a refugiada Ester Moskovic deu aulas de piano, de línguas e de ballet, e abriu em 1946 o Montessori, o primeiro jardim infantil de Portugal.
Nas Caldas da Rainha, a fazer biscates, estava também Paul Stricker, que em 1938 fugira da Áustria, onde a família tinha uma fábrica de malhas. “A ideia era partir para o Canadá”, conta à SÁBADO Ricardo Stricker, o seu filho. “Mas na escala em Lisboa conheceu a minha mãe [Adelaide dos Santos]. Ele quis levá-la para o Canadá, mas ela tinha muito medo da viagem de barco porque os alemães andavam no oceano a abater navios. Então ele ficou cá.”
O casamento, em 1941, não trouxe privilégios a Paul Stricker, que em 1942 foi enviado pela PIDE para a residência fixa das Caldas da Rainha, onde tinha de renovar todos os meses o visto de residência. Christa Heinrich conta na Vértice que Stricker vendeu de tudo nas Caldas da Rainha: “Lâminas de barba, facas, óculos de sol, pilhas, gaitas e outras coisas mais. (…) Certo dia, em Lisboa, a necessidade levou-o a arrancar um dente de ouro para o vender.” Pelo facto de a mulher ser portuguesa (logo, com liberdade de movimentos), ela ia a Lisboa comprar tecidos e levava-os para as Caldas, onde vários refugiados confecionavam peças (Paul fazia saias plissadas) que depois eram vendidas em Lisboa.
Foi em Coimbra que Paul Stricker arrancou como empresário. Em 1944 comprou um grande stock de canetas de tinta permanente estragadas. Consertou-as e revendeu-as. Com a ajuda de dois amigos judeus alemães, iniciou a Paul Stricker & Filhos (hoje Paul Stricker, S.A.), que se especializou na personalização de produtos promocionais para empresas
(canetas, T-shirts, agendas, etc.). Em 2019, tinha acima de 10.000 clientes, em mais de 80 países. Paulo, o filho de Ricardo, é hoje o CEO.
A fuga de Paul Stricker não foi total. Até ao fim, tentou salvar a mãe, mas não conseguiu. Trocaram correspondência (incluindo pequenas mercadorias, como latas de sardinhas e café), até que um dia Paul recebeu uma carta devolvida. “Viemos depois a saber que foi para Auschwitz”, diz Ricardo Stricker à SÁBADO. Quanto ao seu avô, já tinha morrido antes de a guerra começar, “por falta de medicação. Estava doente e os judeus não tinham direito a medicação…”
Brigadas dos costumes
Os refugiados judeus trouxeram uma pequena revolução de costumes ao Portugal atrasado dos anos 1940. Na
AS REFUGIADAS TROUXERAM A MODA DO RABO DE CAVALO, DA MALA A TIRACOLO E DAS BLUSAS SEM MANGAS
iEriceira, José Caré Júnior, um historiador amador da vila, lançou em 1998 um livro sobre o tema: Ericeira, 50 anos depois.
Na introdução, António José Telo, professor de História da Faculdade de Letras de Lisboa, resume as novidades que os refugiados trouxeram: “Na moda, é o rabo de cavalo [que ficou conhecido na altura como “penteado à refugiada”, e que começou a ser muito pedido nos cabeleireiros], é a mala de mão a tiracolo, as blusas largas e sem mangas, as cores mais ligeiras e garridas, as meias de nylon. Nos hábitos do quotidiano, são as mulheres a fumar em público e a frequentarem cafés e cinemas, são as novas atitudes desportivas [como o ténis, que se democratizou com os refugiados] e de contacto com a natureza, sobretudo com a praia, é Q
Q uma maneira de vestir menos formal, que provoca protestos contra o uso de sandálias nos restaurantes, ou de camisas abertas e sem gravata, e toda uma sexualidade, escondida e regulamentada, que se torna mais espontânea e se mostra em público. Na gastronomia, é a chegada do iogurte e da pizza, são as novas bebidas alcoólicas, a começar no whisky, e no maior consumo de cerveja.”
José Caré Júnior dá exemplos curiosos. “Uma das refugiadas usava uma fina pulseira de ouro à volta do tornozelo, excentricidade que era considerada quase um insulto” pelas mulheres locais. “Outro tanto acontecia com a falta de uso de meias por parte das refugiadas que tomavam bebidas nas esplanadas dos cafés. (…) Episódios como o de um casal jovem a beijar-se em público deixavam os indígenas pregados ao
“[NA ERICEIRA] UMA DAS REFUGIADAS USAVA UMA FINA PULSEIRA DE OURO À VOLTA DO TORNOZELO, UMA EXCENTRICIDADE...”
chão, tal era a surpresa e estupefação.”
Em Lisboa, a pastelaria Suíça era tão bem frequentada que era chamada “Bompernasse” (trocadilho com Montparnasse, bairro de Paris). No romance O cavalo espantado (1960), Alves Redol recordava a “montra de pernas e de coxas para todas as gulas lisboetas.” Nas praias, elas eram abordadas por agentes da PIDE por usarem fatos de banho (ou maillot) de duas peças, ou seja, algo próximo do que viria a nascer anos mais tarde: o biquíni. Os fatos de banho deveriam ser de uma peça e incluir um saiote. E os homens não podiam andar de tronco nu.
A famosa colecionadora de arte Peggy Guggenheim escreveu nas suas memórias (Out of This Century: Confessions of an Art Addict, 1987) que “estávamos [os refugiados] sempre a ser levados pela polícia por usar o que se considerava fatos de banho indecentes. Como geralmente não falavam francês nem inglês, os polícias costumavam medir as partes expostas do nosso corpo, faziam cenas e depois multavam-nos.”
Caré Júnior fala em bailes na Ericeira, em competições de bebida nos cafés e em idas de refugiados à pesca com os locais. E recorda algumas personagens, como Aldo Palmesani, “italiano, exuberante, grande fazedor de amizades; confecionava as pizzas em sua casa, com que obsequiava os amigos portugueses, estabeleceu-se depois da guerra com uma loja de gelados na Praça do Saldanha, em Lisboa”. Ou a Sabine, “alemã, judia, fanática pela prática do basquetebol, o que causava espanto às pessoas de cá; muito dada a festas.” Ou o Pachá,
“judeu, egípcio, muito gordo e baixote, figura cómica, era contrabandista de relógios de pulso, canetas e outras bugigangas; teve negócios de importação-exportação em Lisboa depois da guerra.” Ou ainda o Conchel, “turco, misterioso, batoteiro.”
As Caldas da Rainha nunca mais
foram iguais. “Mesmo depois da partida das refugiadas, as mulheres caldenses não ficaram em casa, já estavam habituadas a sair, fumar, frequentar locais públicos, não iam voltar para trás”, conta Fernando Venda num ensaio no blogue Antigos Alunos do Externato Ramalho Ortigão.
“As mulheres antes de 1940 não iam sozinhas nem às compras e passaram a ir a todo a lado e a encontrarem-se em público. Passaram também a usar sapatos mais altos, com ‘cunhas’ de cortiça, saias mais curtas e leves, calças, fatos de banho sem saiotes, nada disto retrocedeu depois da saída dos refugiados, eram hábitos adquiridos. As Caldas eram conhecidas como a República das Mulheres!”, conta no artigo outra testemunha dessa época, que surge identificada como Anita.
A velha da mula
A história dos Bachmann é típica de um certo padrão judaico de fazer negócios: empresas de importação-exportação e representação de marcas. As histórias dos judeus bem-sucedidos em Portugal estão repletas desses casos. Os Bachmann estavam bem instalados na Roménia quando, em 1941, o país deixou a neutralidade e se aliou a Hitler. Em 1942, já estavam refugiados em Barcelona. Maxi e Fanny Bachmann chegaram com duas crianças e tiveram de recomeçar.
Uma dessas crianças, com 10 anos, era Robert Bachmann. Hoje com 88 anos e fortuna feita em Portugal, não quis falar à SÁBADO. No YouTube há um vídeo de 2015 de uma conferência em Israel onde conta uma história curiosa: “Cresci em Portugal, mas fui criado em Espanha quando a minha família foi para lá. Vivi na mesma rua da família real espanhola e sou amigo de Dona Pilar e de Q
“AS MULHERES PASSARAM A USAR SAPATOS MAIS ALTOS, SAIAS MAIS CURTAS E FATOS DE BANHO SEM SAIOTES”
Q Dona Margarida [irmãs de Juan Carlos]. Nunca senti discriminação em Portugal, mas em Espanha quando fui para a escola, no pátio, um rapaz chamou-me judeu de merda. Agarrei-o e empurrei-o contra uma árvore. Ele tinha sangue aqui [atrás da cabeça] e quase morreu [risos]. O diretor do colégio chamou-me bárbaro, mas decidiram não me expulsar. Um dos professores disse: os judeus já sofreram o suficiente... Isto foi em 1945, depois do armistício.”
Nos anos 50, Bachmann já trabalhava com o pai. Primeiro na importação-exportação e depois numa fábrica de botões de plástico, uma inovação que fez tremendo sucesso. Em 1955, mudou-se para Portugal, onde em 1957 inaugurou na Portela de Sacavém uma fábrica de botões. O sucesso seguinte foram as flores de plástico – durante décadas, Bachmann abasteceu o mercado português. Viria depois a criar a Tecmolde, Lda., de exportação de moldes de aço para a indústria de matérias plásticas.
“De modo que em 1960 já tinha umas economias, que me permitiram investir noutro setor. Em dezembro de 1961 conheci uma rapariga numa viagem de avião entre Paris e Lisboa. Era uma portuguesa nascida em África e perguntou-me se conhecia o Algarve”, conta Robert Bachmann no testemunho que deu a José Freire Antunes para o livro Judeus em Portugal (2002). “Foi com ela que vi pela primeira vez aquelas praias pequenas, fabulosas. Naquele tempo, o Algarve era idílico. Em Albufeira existia um único táxi e, na praia da Rocha, apenas o Hotel Bela Vista.”
Um final de tarde, Bachmann foi com a amiga ver o pôr do Sol junto ao Farol do Carvoeiro. “Encontrámos ali uma velha montada numa mula, que me perguntou se eu queria comprar um terreno, enorme, que incluía até uma pequena ilha. Queria 1.000 contos; eu disse-lhe que lhe dava 500 contos, mais para impressionar a minha acompanhante do que para comprar. Só que a velhota desceu da mula, apertou-me a mão e disse-me: ‘Está entregue.’”
Robert Bachmann comprou o terreno – era na praia do Carvalho, no Carvoeiro. E depois foi continuando a comprar terrenos nos anos seguintes. “Até esgotar as minhas economias, em 1965.” Depois casou-se, divorciou-se e foi para o Brasil em 1975. Regressou em 1978 para começar a construir vários hotéis no Algarve, especialmente em Albufeira (o mais conhecido será o Balaia Golf Village, que arrancou em 1982). Em 1980, construiu do zero o que viria a ser o maior parque de campismo do Algarve, o Camping Albufeira, com 27 hectares (e que venderia em 1996 à família de portugueses que explorava o restaurante).
As representações
Os Feist são outra história de triunfo sobre a guerra. É uma história de amor também. Grande parte da família foi morta pelos nazis, mas sobreviveram alguns ramos – um deles em Portugal: o casal Alfred e Rosel, mais o filho Henrique. Em Portugal, a família cresceu. Henrique foi pai quatro vezes: de Pedro (que teve seis filhos, já tem 12 netos e 4 bisnetos – o quinto está a caminho), Renata (que teve três filhos), Jorge (cinco filhos) e Luís (dois filhos, os bem conhecidos músicos Nuno e Henrique Feist).
Pedro Feist é dono da maior empresa de brinquedos do País, a Concentra. É uma típica história de empresários judeus: a representação para o mercado português de marcas internacionais famosas. No caso dos Kolinski foram os relógios, dos Broder as confeções, dos Arié os perfumes, dos Brodheim as roupas, dos Feist os brinquedos – desde os mais antigos, como o Subbuteo, Action Man, Gameboy (Tetris, Super Mário, Pokémon) e a Barbie (“Vendemos 300 mil Barbies no primeiro ano em que chegou a Portugal”, recorda Pedro Feist à SÁBADO), até aos mais recentes, como a Patrulha Pata, Baby Shark, Cars, Winx, Toy Story, Noddy, Frozen ou Harry Potter.
Fora os brinquedos, o grupo empresarial da família chegou a ser representante de 29 marcas, incluindo a Adidas, nascida na Alemanha depois da guerra e que os Feist introduziram em Portugal.
Moises Broder estava a fazer o mesmo no nosso país com outro gi
“ENCONTRÁMOS UMA VELHA MONTADA NUMA MULA, QUE ME PERGUNTOU SE QUERIA COMPRAR UM TERRENO”
gante: a Levi’s. O seu pai, um polaco chamado David Broder, chegou a Portugal em 1928 depois de ter sido impedido de entrar no território da Palestina, na altura território inglês. A história é contada à SÁBADO pelo seu filho, Moises. “Não o deixaram desembarcar e ele veio para Portugal porque tinha aqui um amigo de infância. Depois foi para Lisboa e montou uma firma de importação de óculos, lentes e binóculos. Fez amizade com um casal polaco e era visita regular de casa.” Essa mulher tinha uma irmã, Krejla, que veio para Portugal em 1934. Enamoraram-se e da relação nasceu em 1937 Moises Broder. “Em 1957 comecei a trabalhar com o meu pai e mais ou menos em 1960 estabeleci-me em Lisboa com a importação de confeções.”
Em 1961, Moises Broder foi aos escritórios da Levi’s na Europa, em Antuérpia, e propôs representar a marca em Portugal. “Demorou algum tempo o namoro, até eles perceberem como é que eu trabalhava”, diz. Depois de conseguir o contrato (que durou até 1973), reuniu-se com os proprietários de duas casas famosas, uma para senhoras (a Loja das Meias, no Rossio) e outra para homens (a Pestana & Brito, onde hoje é a Louis Vuitton, na Av. da Liberdade). “Dei-lhes
“AS LEVI’S CUSTAVAM MAIS DE 500 ESCUDOS. ERA UM PRODUTO DE LUXO. FOI UM GRANDE PULO PARA MIM”
o exclusivo por seis meses, e foi o grande pulo para mim.” O modelo 501 da marca custava “mais de 500 escudos, era um produto de luxo”.
Depois, Moises Broder começou a diversificar os negócios. Entrou na banca (acionista do Banco Fernandes Magalhães), depois “metalomecânica, trading, Angola e finalmente o imobiliário”. Casou-se com uma judia de origem jugoslava, foi pai de duas meninas, separou-se e viria depois a juntar-se com Catarina Korn, a mãe da atriz Daniela Ruah. Q
Q Já a história de Pedro Feist está ligada a Solingen, na Alemanha, onde a família tinha uma fábrica de cutelaria. O pai, Henrique, vendia os produtos na América do Sul e na Península Ibérica, e num baile de máscaras no Clube Alemão de Lisboa conheceu uma portuguesa, Maria Matilde. Ela gostou tanto dele que deixou esquecida a pochete – e ele, no dia seguinte, foi a casa dela devolvê-la. Casaram-se em 1934 e foram para Solingen, mas logo a seguir começaram as leis antissemitas. A fábrica foi confiscada e a família fugiu. Instalaram-se
PEDRO FEIST DIZ QUE SE VENDERAM 300 MIL BARBIES NO PRIMEIRO ANO EM QUE AS TROUXE PARA PORTUGAL
numa moradia em Campo de Ourique e recomeçaram os negócios.
Judia por amor
Henrique começou com uma fábrica de exportação de limas e depois uma de importação de brinquedos. Quando a guerra rebentou, juntamente com dois amigos (um deles era Sam Levy, figura importante da comunidade judaica em Lisboa) montaram uma empresa de apoio a refugiados chamada Concentra: guardavam objetos que os judeus conseguiam salvar na fuga (dentes de ouro, joias, móveis), ajudavam na vida em Lisboa e na logística de trânsito para a América. A moradia de Campo de Ourique, com cave e sótão, albergou vários refugiados. Em 1966, quando o filho Pedro contou ao pai que queria montar uma empresa de representação de brinquedos, Henrique concordou e disse que tinha uma sugestão para o nome: foi à gaveta e tirou um carimbo antigo da Concentra.
Na história de Siegreid e Magdalena Weinberg, ela nunca se converteu. Na história de Henrique e Maria Matilde Feist, sim – e foi o seu último gesto de amor. Henrique foi sepultado em 1994 (tinha 88 anos) no Cemitério Israelita de Lisboa, mas a mulher não poderia ir para lá porque era católica. Maria Matilde resolveu o assunto como podia: aos 91 anos, converteu-se. “A minha mãe queria ficar ao lado dele, e quis que na campa ficasse escrito ‘Judia por amor’. Maria Matilde converteu-se e morreu pouco depois, em 2003, aos 95 anos. “E eu, quando morrer, quero ir para lá também, para o lado da minha mãe.” W