“Já li ‘olha mais um monhé’ na caixa de comentários aos meus artigos”
“Fui para as obras logo com 15 anos. Ainda tenho problemas de coluna por carregar sacos de 50 quilos de cimentos às costas”
Foi retornado, viveu numa barraca, trabalhou nas obras (e não só), mas afastou-se para muito longe do cliché do negro pobre. Professor, colunista do Observador, coordena o gabinete de estudos do Chega. Aprecia a ordem e a autoridade. Até nas suas aulas, na Margem Sul do Tejo.
Diz-se um resistente e não exibe amargura pelo esforço para ultrapassar as circunstâncias. Com “trabalho e responsabilidade”, acreditou que a pobreza era uma situação temporária.
Nasceu no Moçambique colonial de 1965. Sentiu o preconceito na pele?
É uma sociedade esmagadoramente negra e um mulato tem qualquer coisa de indefinido. Quando eu era criança dizia-se que o mulato é “filho de uma quinhenta”. Quinhenta era aquela moeda insignificante que os brancos pagavam para frequentar prostitutas dos arredores das cidades moçambicanas, em especial Lourenço Marques. Depois, na altura da independência surgiu “o mulato não tem bandeira”, que foi o que me disseram num autocarro num trabalho de campo em Moçambique, já eu era adulto. Mas foi uma exceção: a minha avó é negra, eu tenho essa ascendência, nunca tive problemas nesse tipo de relacionamento.
Cresceu no seio de uma família multicultural…
…e multirreligiosa. O lado paterno era católico com origens sírias e o materno era islâmico. Do lado do meu pai tenho um avô sírio, Elias, que é o meu lado branco, digamos assim. Este meu avô, que vinha fazer negócios na costa oriental de África, era casado na Síria e engravidou uma negra, a minha avó Cristina, da zona de Tete, profundamente cristã. Do lado materno, tinha uma avô profundamente islâmica – e raramente elas se cruzavam em minha casa.
Lá em casa, como é que se geriam as diferenças?
Havia uma negociação. A minha avó negra católica impôs o batizado, mas era a família islâmica que mandava dentro de casa. Resultado: íamos mais à mesquita do que à igreja – e quando a avó cristã estava mais perto talvez disfarçássemos e íamos à missa. Os meus pais fizeram aquilo que as pessoas fazem para ser racionais: o meu pai nunca abriu mão do seu catolicismo, mas deixou de frequentar a igreja, e a minha mãe nunca abriu mão do seu Islão, mas nunca exigiu conversões ao meu pai e à família dele. Tiveram cinco filhos. Uma frase do meu irmão gémeo ficou famosa: nós somos católicos-apostólicos-muçulmanos.
Comiam carne de porco?
Em nossa casa era interdita. Mas à medida que fomos crescendo, eu e o meu irmão tínhamos a tentação de comer carne de porco – e sempre que íamos a casa do nosso irmão mais velho, ele sabia que queríamos Fanta e carne de fiambre.
O que é que os seus pais faziam?
Nasceram de classe pobre, digamos assim, mais o meu pai, mas como na altura estudou… começou a ter boas condições de vida. Quando eu nasci, já tínhamos um nível de vida bom. O meu pai começou como capataz das obras dos caminhos de ferro e na altura da independência já era pagador, trabalhava na administração. A minha mãe era auxiliar de enfermagem. Nasceu no mato, foi estudar para Tete e depois veio fazer o curso a Lourenço Marques, voltou a Tete, depois casou. Q