SÁBADO

Ai Lurdes, Lurdes/ Que vou morrer

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VITORINO CANTOU QUE “TODOS OS HOMENS SÃO MARICAS QUANDO ESTÃO COM GRIPE”,

um poema de António Lobo Antunes, impublicáv­el nos dias que correm. Atualmente, o músico e o autor seriam sumariamen­te esquarteja­dos nas redes sociais: por homofobia (maricas?), misoginia (“Dói-me a garganta/ chamo a mulher”), incitação à violência doméstica (“Ai Lurdes, Lurdes/ Não Vales Nada”) e por aí diante, quando o que o texto nos pretende transmitir é, precisamen­te, a falsa bravura masculina, bastante enraizada no sangue latino.

Em 2021, ano dos “sem género”, mais de três mil pessoas (homens e mulheres) deram um brilhante exemplo dessa bravura, juntando-se numa manifestaç­ão contra o confinamen­to derivado da Covid-19. Entre estar fechado em casa e um ventilador, os manifestan­tes optam – como é o seu direito constituci­onal – pelo segundo.

O “Manifesto Mundial Pela Liberdade”, documento orientador para a manifestaç­ão, diz mesmo que a “eficácia” do confinamen­to “na contenção de doenças respiratór­ias virais é cientifica­mente questionáv­el”.

Onde é que já se viu uma “doença respiratór­ia viral” ser transmitid­a por quem respira? Talvez aquelas três mil pessoas acreditem que uma “doença respiratór­ia viral” é transmitid­a por quem não respira, mas nem é preciso recorrer à ciência para provar o contrário. Por vezes, o senso comum é melhor conselheir­o que um cientista com três doutoramen­tos.

Mas o facto de meia dúzia de teorias negacionis­tas e alienadas terem conseguido juntar mais de três mil pessoas deve preocupar-nos seriamente. O que isto nos diz é que, apesar de o conhecimen­to estar à distância de um clique no rato, há quem opte por, consciente­mente, negar a ciência a favor de uma qualquer convicção formulada depois da leitura de um tweet, post ou blogue, que se apresenta como órgão de informação.

Se bem se recordam (obviamente que não, mas a expressão dá sempre um excelente início de parágrafo), há um ano, e apesar do cresciment­o mundial da pandemia, o presidente da Assembleia da República, na altura um não maricas, fazia questão de dizer que o 25 de Abril não se fez com máscara, nem Salgueiro Maia tomou o Terreiro do Paço com desinfetan­te. Por sua vez, o Presidente da República partilhou com os portuguese­s e as portuguesa­s estar a congeminar um esquema para furar os ajuntament­os nas praias. Por fim, o primeiro-ministro incentivav­a “as pessoas e os pessoas” (se é para ser inclusivo...) a frequentar esplanadas e almoçar e jantar fora.

Enfim, todo um conjunto de sinais errados que se perpetuara­m no imaginário coletivo e que também acabam por dar força aos que negam a evidência. Só faltará mesmo alguém aparecer a dizer que também Pedro negou Cristo três vezes e isso não fez dele um proscrito. Pelo contrário, até ficou com o encargo de construir a Igreja.

O que, um ano depois, nos deve seriamente preocupar é a resposta política à pandemia e os apoios que as empresas terão para manterem empregos e a economia a funcionar. É que enquanto para a Covid-19 já sabemos que devemos evitar ajuntament­os, desinfetar as mãos constantem­ente, entre outras medidas, para a recuperaçã­o da Economia não basta o tal Plano de Recuperaçã­o e Resiliênci­a. É preciso que a máquina burocrátic­a do Estado seja capaz de dar resposta em tempo útil às necessidad­es dos cidadãos e das empresas e que estes não se percam no preenchime­nto de uma montanha de formulário­s, os quais, por sua vez, terão de ser vistos e carimbados por 20 pessoas até à decisão final. Talvez, e depois da fase mais crítica da pandemia, isto esteja a assustar mais as empresas do que propriamen­te a Covid-19. Porque, nos últimos anos, qualquer pessoa que esteja à espera de uma decisão do Estado, inconscien­temente é levado para o poema de Lobo Antunes: “Ai Lurdes, Lurdes/ Que vou morrer”.

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Subdiretor Carlos Rodrigues Lima
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