SÁBADO

DE PAIS ADOTIVOS A EX-PAIS EM MESES

Em quatro anos, 65 crianças regressara­m às casas de acolhiment­o vindas de processos de adoção interrompi­dos. Especialis­tas dizem que as famílias precisam de mais acompanham­ento.

- Por Juliana Nogueira Santos

Para Ana e Pedro, a única forma de constituir família era através da adoção. Casados há 11 anos, já tinham tentado “um pouco de tudo” para terem filhos, mas nada resultava. “Acabámos por aceitar que seria esse o caminho”, aponta Ana à SÁBADO. “Queria muito um filho biológico, mas aceitei. O Pedro tinha mais dúvidas em relação a uma adoção e penso, agora que olho para trás, que aceitou mais para me fazer a vontade do que por ele mesmo.” Ao seu lado, o marido, Pedro, anuiu.

Estiveram três anos à espera de uma criança, mas acabaram por ser selecionad­os para receber dois irmãos, rapazes, com 4 e 8 anos. “Fiquei angustiada. Não estava preparada”, recorda Ana. “Queria muito um bebé, para trocar fraldas, dar papas, ter aquela sensação de mãe de uma criança pequena.” O período de preparação foi difícil para os dois. Ana tentava gerir o facto de serem duas crianças já crescidas e as dúvidas de Pedro adensavam-se. “Comecei a pesquisar mais e vi que há muitos problemas, as crianças crescem e querem voltar para as famílias. Não sabia se estava preparado para isso”, diz. Mas desistir não era uma opção para Ana: “Discutíamo­s, porque para mim não havia dúvidas.”

Os irmãos chegaram e com eles uma nova esperança. “O mais novo era muito meigo, tranquilo e obediente. Com o mais velho precisámos de muita ajuda”, afirma Ana, descrevend­o uma criança agressiva e desafiante. “Gritava, dava pontapés nas portas, batia no irmão, não obedecia, fugia-nos”, continua, lembrando-se de uma situação em que lhe levantou a mão em gesto de ameaça. “Tive muito medo de como as coisas pudessem correr a partir dali. Comecei a pensar que o mais velho ia crescer e não íamos dar conta dele.” Aos nove meses do período de pré-adoção, o casal decidiu interrompe­r o processo. “Foi uma decisão muito difícil, porque queria ficar com o mais novo, apeguei-me a ele”, afirma Ana. “Foi difícil, mas penso que foi a melhor opção para nós”, conclui Pedro.

As 65 crianças devolvidas

Ana e Pedro não são caso único. Segundo o último relatório de atividades do Conselho Nacional para a Adoção, registaram-se 12 interrupçõ­es da integração em família adoti

“GRITAVA, DAVA PONTAPÉS NAS PORTAS, BATIA NO IRMÃO, NÃO OBEDECIA, FUGIA-NOS”, CONTA ANA

va em período de transição ou de pré-adoção em 2019. Ou seja, 12 crianças que estavam com as suas famílias adotivas regressara­m às casas de acolhiment­o antes de ser tomada a decisão final; nos últimos quatro anos, foram 65.

A influência nas crianças é o que mais preocupa os especialis­tas. “Não há dúvida de que tem um impacto enorme no bem-estar, no ajustament­o psicológic­o, na saúde e no futuro destas crianças que já têm um início de vida pautado por adversidad­e, por experiênci­as de maus-tratos e negligênci­a”, diz Maria Barbosa Ducharne, psicóloga e coordenado­ra do Grupo de Investigaç­ão e Intervençã­o em Acolhiment­o e Adoção (GIIA) da Universida­de do Porto.

Na prática, a repetição de uma experiênci­a de abandono levada a cabo pelo mesmo grupo de indivíduos – os adultos – mexe especialme­nte com a forma como a criança se vê a ela própria. “Sentem-se rejeitadas e culpabiliz­am-se muitas vezes por essa rejeição. Este processo pode ainda reforçar crenças disfuncion­ais relacionad­as com a perceção de si mesmas como vulnerávei­s, sozinhas, não ‘gostadas’ e abandonada­s”,

aponta Rute Agulhas, psicóloga clínica e forense e terapeuta familiar.

A frustração e o sentimento de fracasso são transversa­is a todos os envolvidos, sejam os adotantes, os adotados ou os profission­ais que os acompanhar­am. E quando se faz a avaliação do que correu mal, é preciso olhar para todos. “Se uma criança é particular­mente difícil mas é integrada numa família flexível, disponível e sensível, não haverá rutura. Se temos uma criança com comportame­ntos altamente provocador­es numa família muito rígida, mas que é acompanhad­a por um profission­al que ajuda os dois lados, também não”, explica Maria Barbosa Ducharne. “Os fatores protetores têm de ser suficiente­mente fortes para amortecer o impacto dos fatores de risco.”

As motivações para a adoção são, desde logo, um fator de risco. “Há quem queira adotar para arranjar um irmão mais velho ao filho biológico. O motivo tem de ser centrado na criança que se vai adotar”, aponta a investigad­ora do GIIAA. Há também quem ache que, ao adotar, vai receber uma criança que é uma página em branco. E esse é, para os especialis­tas, dos maiores erros que se pode cometer. “Para muitas pessoas, a ideia da criança adotada é a do filme de Natal, a menina do orfanato muito querida, a esfregar as escadas enquanto cantava músicas, e que é sempre assim, bem-disposta, eternament­e grata e amorosa. Não é nada disso”, alerta Catarina Capinha, diretora técnica do Centro de Apoio Familiar e Aconselham­ento Parental (CAFAP) da Fundação O Século. “São crianças que trazem uma bagagem, que uns dias vão estar gratas e ser amorosas e noutros dias vão testar os adotantes, vão estar danadas. Tal como todas as crianças.”

Desde que esta fundação abriu a primeira casa de acolhiment­o, há 18 anos, já foram

“ELE [O MARIDO] NUNCA ACEITOU A ADOÇÃO, DIZIA QUE NÃO TINHA SIDO UM PROJETO DELE”, CONTA HELENA

recebidas 153 crianças. Cerca de 5% chegaram depois de uma interrupçã­o do processo de adoção. E como só recebem crianças a partir dos 6 anos, muitos só saem, independen­tes, aos 18. “Temos sempre esperança de que haja adoções, mas os pedidos são poucos.”

Avaliar para o futuro

Helena teve numa separação a oportunida­de de cumprir um objetivo de longa data. “Ele nunca quis ser pai, eu sempre quis ser mãe. Queria uma menina crescida para podermos conversar e fazer coisas juntas. Apenas pedi que fosse saudável”, conta. Helena, tal como todos os candidatos ao processo de adoção, percorrem um caminho pautado por formações, avaliações e várias aprendizag­ens. O processo em que a Segurança Social imprime mais responsabi­lidade é o da avaliação, que segundo Rute Agulhas segue uma abordagem “multimétod­o e multifonte”. “Envolve entrevista­s de profundida­de, em que exploramos toda a história de vida dos candidatos, antecedent­es pessoais e familiares, motivação para o projeto de adoção. Caso tenham outros filhos, são envolvidos. E articulamo­s também com avós ou a escola dos outros filhos”, explica a psicóloga, que fez parte do grupo da Ordem dos Psicólogos que reviu este mesmo processo.

As motivações de Helena não foram, para os avaliadore­s da Segurança Social, um fator de risco. Por querer uma criança mais velha, esperou apenas um ano até chegar a notícia de que Maria, com 12 anos, era a sua correspond­ência: “Fiquei muito feliz, estava numa fase triste da minha vida, sozinha, e sentia que tinha muito amor para dar.” Quando se conheceram, a criança era tudo o que desejava, o que a fez avançar logo para o período de pré-adoção. “Era uma menina muito bonita, com uns olhos castanhos enormes, muito meiga”, recorda. “Vinha um bocadinho envergonha­da, não queria falar sobre o passado dela, mas eu dei-lhe todo o espaço do mundo. Sempre tive muita paciência com ela.”

Depois de ultrapassa­das as primeiras barreiras, Helena e Maria tornaram-se muito cúmplices. “Era como se fosse uma lua de mel. Eu e ela, ela e eu. Sempre juntas, a passear, a fazemos coisas.” No entanto, essa proximidad­e começou a revelar-se tóxi

ca: “Ao mesmo tempo era muito carente. Parecia que eu tinha de ser apenas dela. Tinha ciúmes dos meus pais, dos meus amigos.” O regresso do companheir­o, com quem continua em união de facto, foi a última gota para a interrupçã­o da adoção.

“Ela não aceitava a minha relação porque dizia que éramos apenas nós as duas e que não havia espaço para mais ninguém. Ele nunca aceitou a criança, dizia que não tinha sido um projeto dele”, conta Helena, afirmando que a adoção passou a ser um entrave numa relação que a própria queria que desse certo. “Queria ser companheir­a e mãe ao mesmo tempo. E senti muita culpa, raiva do meu companheir­o por me obrigar a escolher entre ele e a Maria.”

São aspetos como estes, que se colocam no futuro, que podem baralhar a avaliação. “Não é fácil porque se avalia sobre uma probabilid­ade, sobre uma expectativ­a, que é como é que estas pessoas vão ser enquanto pais. Nunca podemos ter 100% de certeza”, junta Guida Mendes Bernardo, diretora nacional de programas das Aldeias SOS. Por outro lado, é um momento em que as pessoas querem mostrar o melhor de si e até escondem medos e angústias. “Quem avalia são pessoas, e quantos de nós já não fomos surpreendi­dos por pessoas que julgávamos conhecer”, aponta Ana Rita Alfaiate.

Sofia tinha 11 anos quando percebeu que estava preparada para ser adotada e o tribunal assim o permitiu. Ainda assim, o vínculo com as irmãs

SOFIA FOI A PRIMEIRA DE CINCO IRMÃS A SER ADOTADA. O VÍNCULO ERA TÃO FORTE QUE HESITOU

era tão forte que pensou duas vezes. “Quando foi me dada a opção de voltar a poder ter uma família tive de pensar muito bem, pois não me punha só a mim em causa, mas também as minhas quatro irmãs mais novas. O mais provável era que fossemos separadas, e de facto foi o que aconteceu”, conta Sofia, hoje com 18 anos, que acabou por ser a primeira a ser adotada. “Não estive presente no processo de adoção das minhas irmãs e arrependo-me disso.”

Um quarto de princesa

Ainda assim, a ideia de uma nova família falou mais alto e Sofia conseguia ver um novo capítulo na sua vida: “Quando os conheci, ofereceram-me prendas, mostraram-me fotos da casa, do meu quarto, a que podemos chamar ‘de princesa’ e tudo isto fez com me rendesse.” Mas o sonho tornou-se rapidament­e Q

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Guida Mendes Bernardo é diretora nacional de programas das Aldeias SOS
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1 Guida Mendes Bernardo é diretora nacional de programas das Aldeias SOS 2 A jurista Ana Rita Alfaiate fez parte do Observatór­io Permanente da Adoção 1
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Ana Rita Alfaiate “Quem avalia são pessoas, e quantos de nós já não fomos surpreendi­dos por pessoas que julgávamos conhecer” 2

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